O Alemão gostava de chuva
Ontem choveu e lembrei do Alemão, esse aí de cima. Ficava na chuva, nem dava bola, no verão. Acho que gostava por ser bem peludo (foto abaixo). A não ser quando a coisa apertava, daí ele vinha pro abrigo. Numa dessas vezes o Guedes estava por lá e o fotografou (as imagens reproduzidas nessa crônica são suas). O Guedes gosta de fotografia, tem olho bom e tino para a coisa, gosto das fotos dele.
O Alemão chegou lá no serviço não tinha um ano ainda, pelo aspecto. Magrelo, descobri depois que fora corrido pelos outros cachorros da antiga residência dele. Ficava lá pela frente, durou uns quatro dias isso. No último ele fez um jeito que ia entrar e eu deixei. Ah, deixa o cara, um a mais aqui não vai fazer diferença - pensei. E o Alemão vupt!
Era sestroso e desconfiado, não deixava a gente colocar a mão nele. Devia estar ressabiado com algum outro humano malvado, embora permitisse chegar perto e dar comida, ração. Só não aceitava o toque. Apenas o Mário Arnoldo tocava nele. Ele chamava o Alemão de Companheiro. Eu, de sacanagem e ciúme - pois eu que permitira sua entrada e ele só deixava o Mário encostar -, dizia que o cachorro se reconhecia nele, pois ele era um alemão alto. Eu, ao contrário do Pequeno Príncipe com a raposa, não cativara o Alemão. Não o sufuciente, pelo menos.
O Mário não tardou a me dar o troco: uma cadela, a Pretinha, deu cria e um macho era idêntico ao Alemão. Fui esperando o pequeno crescer e falei pro Mário que o levaria. Pois ele levou antes! Tá, perdi essa, mas o Mário tocava no Alemão, eu não. O Mário era o Pequeno Príncipe dele. Eu, quando muito, um mero aviador perdido no deserto.
E o Alemão ficou por lá cerca de dez anos, nem lembro o tempo exato, mas por certo pouco mais de uma década. Era dele mesmo e do lugar; o lugar passou a ser o lugar dele. Nós éramos seus amigos e ele filava comida por todo o lado, embora fosse no nosso setor que a "boia" fosse mais regular. Virou nosso auxiliar, avisava da aproximação estranha a qualquer momento, bastante útil. Gostava de ficar ao relento. Certa vez comprei uma casinha grande, na qual ele nunca entrou. Possuía ideias e vontades próprias. Poderia contar "N" histórias suas, épicas, pois era muito corajoso, de uma valentia, por vezes, suicida. Que nem quando enfrentou um rottweiler, melhor, atacou e derrubou o dogão à sorrelfa quando esse, desavisadamente, invadiu seu território. Entretanto, essa merece uma crônica exclusiva. E não é lorota, eu vi, fui testemunha ocular do fato.
Agora à tarde está fazendo sol, de novo. Um dia faz chuva, outro dia faz sol. É o eterno retorno do mesmo, climático, eh eh eh eh. Filosofices de buteco à parte, o fato é lembrei do Alemão, ontem. E foi num dia de chuva que ele partiu. Cheguei pela manhã e o encontrei dormindo, no gramado da foto abaixo. Certa hora desconfiei de tanto sono e fui lá ver. Chamei, não atendeu. Ih - pensei. Toquei nele. Morrera. Enterrei ali mesmo, no gramado, uma terra que se revelou duríssima depois de cavar uns trinta centímetros, e o Alemão não era um cão pequeno. Pra ajudar, começou uma garoa fina e renitente num frio de maio, se não me falha a memória.
Passou uma chata por ali e disse: "Ah, morreu. Que bom, um a menos para incomodar por aqui." Queimei por dentro. Levantei a cabeça e respondi, áspero: "Verdade! O grande problema é os que não morrem e ficam por aqui, anojando". Ela arregalou os olhos e não falou mais nada. Claro que eu não devia ter dito aquilo pra moça, entretanto a insensibilidade dela me irritou muito. Quis o destino que fosse eu aquele que lhe desse guarida e que lhe fizesse as exéquias. Na verdade eu era o aviador e ele o Pequeno Príncipe. O Alemão me cativara.
Texto publicado no site do jornal Portal de Notícias: https://www.portaldenoticias.com.br/colunista/53/cronicas-artigos-joao-adolfo-guerreiro.html
Ontem choveu e lembrei do Alemão, esse aí de cima. Ficava na chuva, nem dava bola, no verão. Acho que gostava por ser bem peludo (foto abaixo). A não ser quando a coisa apertava, daí ele vinha pro abrigo. Numa dessas vezes o Guedes estava por lá e o fotografou (as imagens reproduzidas nessa crônica são suas). O Guedes gosta de fotografia, tem olho bom e tino para a coisa, gosto das fotos dele.
O Alemão chegou lá no serviço não tinha um ano ainda, pelo aspecto. Magrelo, descobri depois que fora corrido pelos outros cachorros da antiga residência dele. Ficava lá pela frente, durou uns quatro dias isso. No último ele fez um jeito que ia entrar e eu deixei. Ah, deixa o cara, um a mais aqui não vai fazer diferença - pensei. E o Alemão vupt!
Era sestroso e desconfiado, não deixava a gente colocar a mão nele. Devia estar ressabiado com algum outro humano malvado, embora permitisse chegar perto e dar comida, ração. Só não aceitava o toque. Apenas o Mário Arnoldo tocava nele. Ele chamava o Alemão de Companheiro. Eu, de sacanagem e ciúme - pois eu que permitira sua entrada e ele só deixava o Mário encostar -, dizia que o cachorro se reconhecia nele, pois ele era um alemão alto. Eu, ao contrário do Pequeno Príncipe com a raposa, não cativara o Alemão. Não o sufuciente, pelo menos.
O Mário não tardou a me dar o troco: uma cadela, a Pretinha, deu cria e um macho era idêntico ao Alemão. Fui esperando o pequeno crescer e falei pro Mário que o levaria. Pois ele levou antes! Tá, perdi essa, mas o Mário tocava no Alemão, eu não. O Mário era o Pequeno Príncipe dele. Eu, quando muito, um mero aviador perdido no deserto.
E o Alemão ficou por lá cerca de dez anos, nem lembro o tempo exato, mas por certo pouco mais de uma década. Era dele mesmo e do lugar; o lugar passou a ser o lugar dele. Nós éramos seus amigos e ele filava comida por todo o lado, embora fosse no nosso setor que a "boia" fosse mais regular. Virou nosso auxiliar, avisava da aproximação estranha a qualquer momento, bastante útil. Gostava de ficar ao relento. Certa vez comprei uma casinha grande, na qual ele nunca entrou. Possuía ideias e vontades próprias. Poderia contar "N" histórias suas, épicas, pois era muito corajoso, de uma valentia, por vezes, suicida. Que nem quando enfrentou um rottweiler, melhor, atacou e derrubou o dogão à sorrelfa quando esse, desavisadamente, invadiu seu território. Entretanto, essa merece uma crônica exclusiva. E não é lorota, eu vi, fui testemunha ocular do fato.
Agora à tarde está fazendo sol, de novo. Um dia faz chuva, outro dia faz sol. É o eterno retorno do mesmo, climático, eh eh eh eh. Filosofices de buteco à parte, o fato é lembrei do Alemão, ontem. E foi num dia de chuva que ele partiu. Cheguei pela manhã e o encontrei dormindo, no gramado da foto abaixo. Certa hora desconfiei de tanto sono e fui lá ver. Chamei, não atendeu. Ih - pensei. Toquei nele. Morrera. Enterrei ali mesmo, no gramado, uma terra que se revelou duríssima depois de cavar uns trinta centímetros, e o Alemão não era um cão pequeno. Pra ajudar, começou uma garoa fina e renitente num frio de maio, se não me falha a memória.
Passou uma chata por ali e disse: "Ah, morreu. Que bom, um a menos para incomodar por aqui." Queimei por dentro. Levantei a cabeça e respondi, áspero: "Verdade! O grande problema é os que não morrem e ficam por aqui, anojando". Ela arregalou os olhos e não falou mais nada. Claro que eu não devia ter dito aquilo pra moça, entretanto a insensibilidade dela me irritou muito. Quis o destino que fosse eu aquele que lhe desse guarida e que lhe fizesse as exéquias. Na verdade eu era o aviador e ele o Pequeno Príncipe. O Alemão me cativara.
Texto publicado no site do jornal Portal de Notícias: https://www.portaldenoticias.com.br/colunista/53/cronicas-artigos-joao-adolfo-guerreiro.html