Acordei Angelina Jolie. Boca carnuda, rosto perfeito e um corpo de Malévola, vilã sedutora. Autoestima em trampolim num salto louvável. Vesti um moletom cinza, coloquei um All star preto, fiz um coque desarranjado, escovei os dentes, passei um gloss transparente e peguei as chaves para ir à padaria.
Abrindo a porta, dei de cara com a vizinha de frente. Olhou-me com um riso estranho, irônico, sei lá, parecia um detector de metais com função exponencial para casos exclusivos de estética, um comentário entre os dentes:
- Esportiva demais hoje...
Levei na “esportiva”. Não ia correr nenhuma maratona e também não sou patrocinada por nenhuma marca de artigos esportivos. Não haveria mal algum nisso (Adidas, me enxerga...)mas queria ser leve... Ao menos nas roupas. Não colou pra “social”. Mas e daí? Padaria à vista! Pudim de leite condensado, croissant, pão francês, rosquinha de nata e sonhos caramelizados pra apagar os pesadelos do elevador... Um olhar acusador não representa nada perto das delícias da Tia Sônia! Lá vou eu!
- Uai? Que coque é esse? Acordou atrasada? 
Esse coque é um penteado muito utilizado em reuniões não formais para vencer o calor tropical do Brasil, também usado por uma bailarina meio atrapalhada, quem sabe uma mulher apressada ou um cocão na sua cabeça? Talvez alguém acordou feliz e coque! Eram as respostas que faziam ciranda na minha mente esperando a responsável pela limpeza do prédio liberar a plaquinha do “chão molhado”. O que mais faz um porteiro além de cuidar do cabelo alheio? Sorri gentilmente, carrega sacolas, leva recados e não usa a tática das três peneiras. Em tempo, veio me dizer que a “xará” foi demitida porque fazia comentários maldosos no elevador. É mesmo Markito! Não me diga... Se todo mundo que fizesse comentário “maldoso” fosse demitido, hein? O super sincero tava impregnado no córtex cerebral, a ironia vinha de jato, mas mantinha a linha “antifragilidade” (resignação e resiliência caíram em desuso).
Vento frio, cabelo voando, o frizz rebelde quis plantar galhos secos no jardim capilar, não deu outra:
- Que cabelo é esse esvoaçado? A quarentena te fez fitness?
Vai lá pra “house” e veja o quão saudável sou. Acordo às seis, medito, vou à academia, trabalho, como, choro, grito, reclamo, agradeço; nem sempre nessa ordem. Mas não é possível. Será que alguém pode barrar os comentários deselegantes e invasivos das pessoas sem noção do conceito de liberdade de expressão? Quem sabe uma armadura, um escudo, uma varinha de condão ou uma dose de “semancol”! Não perguntei nada, custa caro manter o equilíbrio emocional e não perder a conta até o 200. Autoestima bate e volta umas 500 vezes nesse jogo de manipulação de um esteriótipo perfeito ou da colocação de um rótulo no produto. Mas e o lacre? Nada! Conjunto vazio. Zerou!
- Moleton e all atar não combinam contigo. Ficou diferente, mais jovem!
Na real, a partir de amanhã só tênis e moletom. Tudo que queria era ficar mais jovem. Se pudesse voltar ao ventre materno pra escolher umas qualidades faltosas seria o ápice. Até lá, sorriso nos lábios e fingir que não se ofende. Vai me dizer que a avaliação alheia não te incomoda? Então ok, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado.
Sacola na mão, dinheiro trocado, a moça do caixa diz que assim não vou arrumar namorado! Quem te deu essa liberdade, fofa? E se eu já tiver casado? Castidade? Tântrico?
Desisto, acordei a Angelina Jolie que dormia em mim, mas confesso, não cola. Voltei olhando pra todos os lados evitando contatos, como se devesse alguma coisa. Chateada, talvez.
A Covid 19, o Brasil sem Ministro da Saúde, o Queiroz, a nova gripe nos porcos da China, o tornado em Curitiba, gafanhotos na Argentina, a dengue, a Economia Mundial e o povo preocupado com o coque no cabelo e a roupa pra arrumar pretendente? Do jeito que a onda vem daqui a pouco o nudismo virará a regra... 
Para com esse movimento terra, já posso descer? Carrossel não faz meu tipo, pior twister. Antes que os gases radioativos da pequenez humana ultrapassem os considerados tóxicos para a saúde do mundo. Hastag a humanidade não evoluiu ou está em fase de retrocesso.
Angelina Jolie morreu no último episódio da série a vida como ela é! Não percam!
- Mônica, Mônica. Está perdendo a hora. Você vai à padaria hoje?
- De novo, não! De novo, não.
Travesseiro sobre a cabeça e a vida real chamando no interfone.
Um pulo e água no rosto. No espelho, cara a cara com ela. Comigo. Eu! Faz o tipo engomadinha e vai!

 
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 30/06/2020
Reeditado em 01/07/2020
Código do texto: T6992655
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.