Restos

Passo de carro na estrada de terra batida, caminho da roça. A velocidade é pouca, para aguentar os solavancos da estrada mal cuidada e poeirenta. É bem cedo, e nessa época do ano faz frio. O sol ralo quer vencer a cortina de neblina. Uma canção sertaneja dá o tom bucólico da viagem. Quando olho à direita, vejo um resto de casa. As paredes avermelhadas de barro e adobe custam a ficar de pé. Algumas partes já ruíram e uma parte do teto é, agora, feito de estrelas, de chuva e de sol. A mais fiel árvore, um ipê amarelo, não abandonou a casa, que danação! Serviu para deixar a cena ainda mais triste! Sem portas e janelas, pode-se ver lá dentro. Tudo escancarado, até as vísceras, se as tivesse, veríamos. Desolação!... O auto passou devagarinho, e eu não queria que passasse, não queria ir embora... meus olhos grudaram na cena dos restos de vidas por ali. Guardei no coração essa vastidão, esse sertão, essa dor... Sim, dor! Maldita dor que sinto na minha enorme humanidade e pouca santidade! Porque o pensamento é perguntador e indaga: - Aonde foram seus donos? Quem eram? Quais suas labutas? O que sofreram e choraram? Quanto amaram? A quem amaram? Se amaram? Nas noites de lua, namoraram? Aposto que tinham um gato no borralho do fogão e um cachorro bom de porta. Ah, tinha fumaça de pito de palha que subia, subia em argolinha, distração depois da lida diária. Tinha enxada, roçados, capado na pocilga? Um "cado" de gado, galinhas no terreiro? Aposto que tinha um rádio falador e tamboretes na cozinha! Trapinhos no varal... Na cozinha, panelas bem areadas, uma garrafa de aguardente e queijo mofado. Ah, um cavalo com suas pobres tralhas de montaria, algumas arreatas feitas ali mesmo. Posso jurar que tinha uma farmácia natural, pegada à cozinha, com ora-pro-nóbis, erva-de-Santa Maria, funcho, hortelã e alecrim. O chão de terra batida era varrido com vassouras de capim-vassoura, posso até ver a poeira subir, mesmo tendo aspergido água para evitar o poeirão. Aiai... Por que me machuco assim? Pensar nos restos de vida de alguém que nem sei o nome? Aiai... Restos, são apenas restos...

Cassia Caryne
Enviado por Cassia Caryne em 30/06/2020
Reeditado em 02/07/2020
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