Vitrine

Queria ver as flores do jardim, as crisálidas, borboletas, beija-flor, colibris, joaninha, cigarras e lagartas, para a inspiração de um poema bucólico. Onde a poesia tivesse o aroma das rosas, e as letras, melodia.

Queria enfeitar as brigas do relacionamento, bordar palavras doces na discussão, tingir com as cores do arco-íris a desilusão, pintar o símbolo do infinito na traição e recitar poemas de amor no sarau das lágrimas.

Queria medir o amor depois do abalo sísmico da confiança, numa escala richter de 0 a 9,5, e dizer que sua magnitude é 10.

Queria tocar harpa, cítara e trombeta; falar a língua dos anjos; dançar ao som dos ventos uivantes; e cantar é isso aí.

Queria ser Juliet para morrer com seu Romeo ou Isolda e Tristão, a bela adormecida para acordar com um beijo, e ser Cinderela para sempre. Queria ter os pensamentos castos, a alma leve, o coração puro, a mente livre e as mãos doces.

Assim, escreveria poesias de açúcar. Queria acreditar em papai Noel para ganhar presentes, em super-heróis para me proteger do perigo, em príncipe encantado para desejar todo dia, a mesma mulher. Queria viver num país desenvolvido, com mentes evoluídas, onde a honestidade fosse criada em berço, e a empatia fosse canção de ninar.

Queria muitas coisas, inclusive ter 16 anos, mas cresci, e a fantasia se perdeu. Tenho lapsos de felicidade, e para sempre são as taxas, impostos e contribuições. Vivo no jardim da dívida, até para respirar, paga-se. É boleto, cartão de crédito, carnê, cheque especial, empréstimo consignado e agiota.

O príncipe virou um pangaré, cruzador de mulher; trai, mata, espanca e ainda quer pensão. Alguns cavalheiros restam com certeza, são reservas de boa safra; e o último romântico é Lulu Santos - proibido para mulheres. Para digerir esse bolo, só tomando umas. Ou arrastar o pé nas festas juninas, aqui do nordeste, mas a quadrilha é de Brasília. Fica complicado dissecar sobre o amor enquanto a vida for uma vitrine.