Diário da Pandemia

Acordou tão excitado que sentia o elástico da cueca surrupiada laciar o velho calção manchado de cloro. Boca seca, olhos semicerrados de remela, enxergava no espelho trincado diante da cama um verdadeiro criminoso numa cadeia, só que essa penitenciária era o barraco onde divide a cama com a mulher e seu filho de cinco anos. Depois do início de isolamento já fazem noventa dias que vive numa rotina claustrofóbica submerso num terrível cheiro de mofo que toma conta de cada canto desse muquifo sem CEP e, apesar de toda quebrada não guardar a quarentena, tenta aos trancos e barrancos manter as restrições, seu moleque tem comorbidades e nessa manhã ouve noticiário do rádio do barraco contíguo, que a ajuda Emergencial do governo vai atrasar e que todos devem observar o distanciamento social, essa última notícia é foda! Tira numa tacada só dois dos poucos direitos que a todo custo ainda tem na periferia, a liberdade de ir e vir, e a tranquilidade que a cabeça de cima precisa ter pra manter a cabeça de baixo esperta pra raros momentos em que o garoto pega no sono, enfim possa trepar com sua nega, desopilando as pressões dessa rotina de condenado. Mas pra ser sincero, como toda a antiga normalidade se desconfigurou, nem isso mais consegue fazer, foi aí que do nada começou a se entregar a umas paradas de reflexão filosófica; há alguns anos já gostava dessas idéa, mas deixou de frequentar a igreja evangélica da esquina. Daí em diante mantém uma visão meio existencialista da vida, substitui o pão e vinho da Santa Ceia pelo torresmo e a pinga, mas quer um papo reto? curte mais maconha, só que erva sumiu da quebrada, desde que Bené, há três semanas agoniza numa UTI do Centro por conta da covid 19, baixando as portas da boca, por isso que suas brisas tem se limitado aos goles de velho barreiro e as constantes reflexões sobre a vida. Olhando nessa manhã pra seu pau ereto, percebe que apesar de fodido, seu instinto reprodutor mesmo sem tesão é um exemplo de resistência política contra uma sociedade que lhe é cruel, e que nesse caos social tira a fé; a liberdade e a erva bendita que alivia a dor de sentir que mesmo muito antes da Pandemia sua vida já corria risco de morte e relutante seu membro viril tá ali para provar que mesmo na miséria e sem a certeza de que algum dia gozara alguma coisa de bom, é melhor morrer lutando, do que ser um prisioneiro de pica mole pelo resto da vida.

Jazi Nask
Enviado por Jazi Nask em 29/06/2020
Reeditado em 08/09/2020
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