Morreu ateu
1. Não foi mais uma vítima da Covid-19. Meu amigo morreu, dia desses, não sei de quê. A família não divulgou a causa Mortis; e eu, em respeito à dor dos seus familiares, não insisti em sabê-lo. Fiquei na minha, lamentando a morte do velho companheiro.
2. Os que, ao pé da cama, aguardavam sua partida definitiva, disseram-me que o amigo demorou a morrer; e que o desenlace só aconteceu quando apenas o médico que o acompanhava permaneceu no quarto.
A parentela se afastara, atendendo a um pedido de uma velha enfermeira que operava na área.
3. Li, em uma dessas biografias de Allan Kardec, que "o processo de desencarne" é retardado quando os parentes se juntam no quarto do moribundo para pedir sua melhora ou a salvação de sua alma.
4. Eis o texto. "Os espíritos iniciam o processo, mas, por vezes, os parentes que estão com o doente vibram tão intensamente para que ele continue vivo que acabam dificultando demais o desencarne. Para resolver essa questão, os espíritos fazem o doente ter uma melhora súbita.
Nesse momento, os parentes relaxam e retornam aos seus afazeres, e então, na sequência, os espíritos podem retomar o processo de desligamento, vindo o doente a falecer em poucas horas".
5. É provável que com o amigo o mesmo tenha acontecido, pois, sua família é frequentadora constante das sacristias, amiga dos vigários e até do bispo diocesano. Uma família muito religiosa, portanto.
Menos o moribundo que se disse ateu a vida toda.
6. Um camarada lido, ele gostava de citar Machado de Assis nas suas conversas e nas crônicas que escrevia. Mostrava conhecer bem o Bruxo do Cosme Velho. Vivia a perguntar se, afinal, Bentinho fora ou não traído por Capitu, dúvida deixada por Machado no seu belíssimo "Dom Casmurro".
7. Conhecia, certamente, essa passagem na vida de Machado de Assis contada por Josué Montello em um dos seus "Diários". Vale a pena recontar.
"Nenhuma esperança de saúde para o velho escritor. E um dos amigos, sentindo que se aproximava a hora final, propôs ao mestre, numa pergunta piedosa: - Posso mandar chamar um sacerdote? Machado moveu a cabeça numa negativa. E com a voz distante, já quase extinta, marcando a coerência do homem com o seu pensamento: - Não quero... Não quero... Seria uma hipocrisia..."
8. Não houve quem convencesse o amigo a receber o vigário do seu bairro para ministrar-lhe o Viático.
Nem os apelos de sua mãe, que esteve ao seu lado com um terço na mão, fê-lo aceitar a visita de um padre. Morreu ateu, como fora enquanto viveu; morreu "marcando a coerência", como o fez Machado de Assis, seu autor predileto. Deram, ambos, um bom exemplo.
1. Não foi mais uma vítima da Covid-19. Meu amigo morreu, dia desses, não sei de quê. A família não divulgou a causa Mortis; e eu, em respeito à dor dos seus familiares, não insisti em sabê-lo. Fiquei na minha, lamentando a morte do velho companheiro.
2. Os que, ao pé da cama, aguardavam sua partida definitiva, disseram-me que o amigo demorou a morrer; e que o desenlace só aconteceu quando apenas o médico que o acompanhava permaneceu no quarto.
A parentela se afastara, atendendo a um pedido de uma velha enfermeira que operava na área.
3. Li, em uma dessas biografias de Allan Kardec, que "o processo de desencarne" é retardado quando os parentes se juntam no quarto do moribundo para pedir sua melhora ou a salvação de sua alma.
4. Eis o texto. "Os espíritos iniciam o processo, mas, por vezes, os parentes que estão com o doente vibram tão intensamente para que ele continue vivo que acabam dificultando demais o desencarne. Para resolver essa questão, os espíritos fazem o doente ter uma melhora súbita.
Nesse momento, os parentes relaxam e retornam aos seus afazeres, e então, na sequência, os espíritos podem retomar o processo de desligamento, vindo o doente a falecer em poucas horas".
5. É provável que com o amigo o mesmo tenha acontecido, pois, sua família é frequentadora constante das sacristias, amiga dos vigários e até do bispo diocesano. Uma família muito religiosa, portanto.
Menos o moribundo que se disse ateu a vida toda.
6. Um camarada lido, ele gostava de citar Machado de Assis nas suas conversas e nas crônicas que escrevia. Mostrava conhecer bem o Bruxo do Cosme Velho. Vivia a perguntar se, afinal, Bentinho fora ou não traído por Capitu, dúvida deixada por Machado no seu belíssimo "Dom Casmurro".
7. Conhecia, certamente, essa passagem na vida de Machado de Assis contada por Josué Montello em um dos seus "Diários". Vale a pena recontar.
"Nenhuma esperança de saúde para o velho escritor. E um dos amigos, sentindo que se aproximava a hora final, propôs ao mestre, numa pergunta piedosa: - Posso mandar chamar um sacerdote? Machado moveu a cabeça numa negativa. E com a voz distante, já quase extinta, marcando a coerência do homem com o seu pensamento: - Não quero... Não quero... Seria uma hipocrisia..."
8. Não houve quem convencesse o amigo a receber o vigário do seu bairro para ministrar-lhe o Viático.
Nem os apelos de sua mãe, que esteve ao seu lado com um terço na mão, fê-lo aceitar a visita de um padre. Morreu ateu, como fora enquanto viveu; morreu "marcando a coerência", como o fez Machado de Assis, seu autor predileto. Deram, ambos, um bom exemplo.