Só falta chegar a Peste
O Dr. Azedo acorda cedo. Abre a porta de uma cadeia, sobe no ônibus, senta, desce do ônibus, sobe os degraus que o levam à passarela de pedestre para cruzar a avenida em segurança. Condenação diária, sem grades.
O trânsito, às primeiras horas da manhã, já é intenso. O engarrafamento rotineiro já começou. Por isso, evita andar de carro, é outra prisão, e caminhar o aproxima dos peregrinos que cumprem a pena eterna e só descansam quando dormem, Sísifos modernos. Vindo de ônibus pode dormir, atravessar as horas sem estresse, talvez até sonhar um sonho bom.
A avenida está num vale. As ruas marginais se unem por algumas passarelas sobre a avenida. A passarela é cheia de buracos. Nos buracos, a água da chuva recente dificulta o caminho e ameaça sujar os sapatos, as barras das calças. O prefeito não atravessa a passarela, nunca irá reformá-la.
Cruzada a passarela, Dr. Azedo encontra famílias indígenas - menos os pais - encenando a manhã. As crianças, de cócoras ou de rastros, brincam com gravetos, sementes caídas ou cacos de pedra, alheias à tragédia. Imaginam cachorrinhos carros, aviões em sua mente ainda em formação. Mais tarde, as mulheres irão pedir esmolas pelo micro centro de uma cidade sem pátria e os homens continuarão desaparecidos.
Na cidade sem pátria, todos vivem para arrancar o máximo em tempo mínimo e fugir para outros lados. As mães indígenas que amamentam já estão postadas nas esquinas, exibindo os seios magrinhos, enquanto os bebês chupam. Os curumins conseguem sorrir e até gargalhar, embora não haja nenhuma esperança à frente: só uma pena a cumprir no Vale de Lágrimas. Apesar de tudo, a inocência se diverte. As mães, acocoradas, incansáveis, descascam mandioca enlameada e preparam maços de salsa e cebolinha para vender. São miúdas, magérrimas, sujas e tristes.
Nada pode distraí-lo, Dr. Azedo, é seguir sempre em frente. Na sequência da caminhada, vê os bancos, as torres apontando as nuvens, redes de hotéis e lojas internacionais, cassinos, loterias prometendo isso ou aquilo, anúncios luminosos oferecendo o Céu em forma de bugigangas. Todos, em teoria, podem ir a endereços como Paseig de Gràcia, comprar perfumes, passagens para resorts praianos, ilhas do Caribe, Disney e assemelhados.
Num cruzamento, uma placa de rua enaltece o Clero, em frente a uma igreja de franquia. Mais à frente, o lixo da madrugada sendo remexido e disputado por cães e homens sem dono. Vez ou outra, um se sente lesado e ladra ou grita, morde ou pontapeia, conforme o caso.
Dr. Azedo chega a seu destino, tranca a porta da outra cadeia, esconde a rua. Só falta essa: chegar uma nova peste e uniformizar o mundo.