Sujeito interiorizado

Leio que uma carreta carregada de postes invade o muro de uma residência no agreste, leva no peito vários tijolos e vigas, deixa a casa descoberta. Imagino a tragédia sem vítimas fatais, a dimensão da carreta, a concretude dos postes, o impacto —e chego à dor dos tijolos e vigas. Como isso é possível, não sei.

Até sei, aliás: um sujeito interiorizado. Não é normal não.

Estes dias um vizinho meu reuniu, no quintal, uns pedaços de móveis em desuso e acendeu fogueira. Ainda não era época junina nem existia decreto proibindo tal costume. O fogo começou baixo, sem querer alardear, refratário a incêndio. Descontente, meu vizinho deliberou animar as pequeninas labaredas. Buscou querosene e banhou os móveis usados. O fogo fez grande fumaça, opaca e nebulosa, abrangendo o quintal inteiro; em seguida foi a vez das labaredas incendiarem-se ferozmente —e houve princípio de incêndio.

Outro vizinho veio observar o espetáculo ígneo, aproximou-se das chamas e alertou o incendiário para ter cuidado com fogo. O incendiário respondeu que eram apenas móveis velhos, em desuso, incapazes de provocar fogo grande. Ouvi a sentença e compadeci a dor dos inanimados. Cadeiras, cabos de vassoura, braço de ventilador, almofada de sofá, bola couraça furada, nem todos móveis, mas todos entregues indiscriminadamente às chamas, sem licença nem perdão.

As cadeiras, a bola couraça, os cabos de vassoura, o braço de ventilador, a almofada de sofá, nem todos móveis, mas todos entregues indiscriminadamente às chamas, sem licença nem perdão: a dor dos inanimados: toda uma história de vivências apagada em chamas.

O incêndio não era caso de polícia, como foi demonstrado mais tarde, mas, de minha parte, sujeito interiorizado, penso que ali estava excelente ocasião para a polícia treinar uma pergunta muito recorrente em suas ações domiciliares e atenuar as dores dos inanimados. Quando os agentes da lei chegassem e perguntassem quem era o proprietário e diante das cadeiras, dos cabos de vassoura, do braço de ventilador, da almofada de sofá, da bola couraça furada, nem todos móveis, mas todos entregues indiscriminadamente às chamas, o vizinho incendiário necessitasse de um advogado, haveria excelente motivo para eu, na condição de vizinho do incendiário e sua testemunha de acusação, sair em defesa das dores e vivências dos inanimados.

Meu vizinho que sempre, imagino, me julgou aprumado e de posse das recomendadas faculdades mentais, ele e os mais que soubessem do acontecido me teriam por amalucado. Saberiam de minha advocacia clandestina em defesa das vivências dos sujeitos inanimados. Todos ficariam assustadíssimos, e a estatística registraria mais um amalucado no mundo, mais um sujeito interiorizado descoberto. Seria uma grande descoberta, e a carreta carregada de postes teria mais um sujeito inanimado com quem dialogar. Eu sei. Não é normal não.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 28/06/2020
Reeditado em 28/06/2020
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