São João no Nordeste: quando o espírito coletivo nos dá ânimo para continuar re(existindo) em tempos de pandemia
Estive pensando sobre como seria o São João deste ano, em tempos de pandemia e crise política, quando o mote é “distanciamento social e isolamento”?
O festejo sempre se deu de forma coletiva, a exemplo da feitura da palhoça – uma espécie de salão de palha onde acontece a festa. Eu me recordo com carinho da minha infância, de como o povo da minha comunidade rural se uniam em busca de palha de coqueiro e madeira nos sítios vizinhos para construção desse espaço. Os enfeites eram a reunião dos objetos que cada pessoa tinha em sua casa: abano, vassoura, ralo de zinco, chapéu. E as bandeirinhas que decoravam aquele lugar? Quando não eram de plástico, eram feitas de revistas, tipo da Avon, e coladas muitas vezes com grude – uma cola feita de farinha e água.
A quadrilha, depois de muitos ensaios nas semanas que antecediam a noite de São João, apresentava-se com união, brilho e alegria. Já as comidas, ah! Essas eu nem preciso dizer que precisavam de quatro, seis ou dez mãos. Quem aguentava mexer uma canjica sozinha? Oh, desgramada para demorar a dar o ponto!! E uma pamonha? Se conseguisse fazê-la, não conseguiria amarrá-la! E requeria muito braço para ralar o milho. Atualmente, o ralo tem, cada vez mais, sido substituído pelo liquidificador e, evidentemente, facilitou bastante esse processo.
Ontem e hoje, festejo junino é sinal de coletividade.
No Nordeste, esse período sempre foi uma festa só, especialmente nos municípios do interior, nos grandes e pequenos municípios. O colorido das bandeirolas trazem alegria para todo o transeunte que se mete a passar por ruas e avenidas dessas cidades nessa época do ano. Nos sítios e povoados da Zona Rural, a brincadeira pode ir até o amanhecer.
Minha mãe conta, saudosa, como eram os forrós de sua mocidade. Seguidos pelo som de zabumbeiros e sanfoneiros – integrantes do trio pé-de-serra – ela e seus irmãos andavam léguas em busca de uma diversão nos sítios ali próximos. A festa começava no São João, no dia 24, e terminava no São Pedro, no dia 29.
E esse era o período de folguedos como o coco de roda, o cavalo marinho ou o Siriri animarem ainda mais a folia. Minha mãe nessa época, ainda hoje, tenta um possível ensaio do Siriri com qualquer brincante que ela encontra dando sopa por ali, seja eu, seja minha irmã. Ela entona no seu próprio canto, os versos musicados dessa manifestação:
“Ô Siriri, ô meu bem, ô Sirirá
Roubaram o meu amor
E me deixaram sem amar
Eu agora arranjei outro
E quero ver você tomar”
Em noite de São João, faz-se também simpatias como cravar uma faca no caule do pé de bananeira para saber a letra inicial do nome do futuro amado ou da futura amada. O pé-de-moleque não faltava, o milho idem e a fogueira, nada ecológica, era acendida na véspera (23) ou no dia (24). Ali, dando voltas em torno da fogueira se tornava comadre, afilhado ou padrinho de “fogueira” de alguém. Um simples verso era suficiente para selar esse batismo, esse compadrio:
“São João dormiu, São Pedro acordou
Vamos ser comadres que São João mandou
Adeus comadre!”
A simbologia do fogo presente nessa festança não é nada recente, aliás, nem mesmo as festividades juninas. Conta-se que, antes de homenagearmos os santos do ciclo junino: Santo Antônio, São João e São Pedro, como herança católica da colonização portuguesa, as celebrações eram direcionadas a divindades como a deusa romana Juno, responsável pela fertilidade e pela boa colheita, cujo nome originou a denominação do sexto mês do ano, junho.
Assim, o agradecimento a divindades não católicas pela colheita em um período que marca o fenômeno astronômico solstício, de inverno aqui no Hemisfério Sul, e de verão no Hemisfério Norte, pode ser percebida também como herança pagã. O Sol tinha uma simbologia especial para os povos da antiguidade e hoje ainda marca a passagem das estações do ano. E o catolicismo se apropriou dessas manifestações pagãs para gerar outros tipos de signos. Não raro, somos convidados para participar de rituais como novenas com fogueiras, realizadas para pagamento de promessa por algum milagre ou pelo “ano bom” no campo, ou seja, meses de muita fartura – como é chamada a abundância de alimentos.
Curiosamente, junho também é mês da colheita da lavoura no Nordeste, especialmente do milho. Os agricultores que aproveitam o “março de São José” para plantar sabem que, três meses depois, a espiga de milho que “abonecou” espera para ser retirada do pé. Do campo para a mesa, o milho dá forma à canjica, à pamonha, ao mungunzá e ao bolo. Eu nem preciso dizer que a comilança é grande, não é, mesmo?
Bom, mas dessa festa bonita, só restou a saudade.
Este ano, a alegria junina foi sobreposta pela tristeza em decorrência da pandemia que resultou na interrupção de centenas de milhares de vidas brasileiras, cuja responsabilidade é da falta de gestão política humana do desgoverno atual. A animação deu lugar à indignação pelos rumos econômicos traçados por esse governo que prima os riscos ao invés dos pobres, que eleito por um sistema democrático coloca a população contra a democracia – aliás, qual o seu interesse em um Brasil não democrático?!, que escolhe financiar grandes empresas a oferecer ajuda a pequenos comerciantes.
Em tempo de quarentena, da quadrilha não participaremos, veremos pela televisão, e não será junina, será a das rachadinhas do filho do presidente Bolsonaro, Flávio. Em um esquema de enriquecimento ilícito e favorecimento da milícia do Rio de Janeiro, a partir do retorno do dinheiro público “pago” a funcionários fantasmas.
As comidas típicas não serão feitas a partir do milho verdinho, acabado de chegar da roça, mas com o milho transgênico e cheio agrotóxico. Porque, no nosso país, há liberação, a torto e a direita, dessas substâncias comprovadamente maléficas para a saúde dos consumidores e dos agricultores. Descaradamente, esses venenos são aprovados com o discurso governamental de não serem prejudiciais, a exemplo da fala irresponsável da ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Somente em 2019, 474 agrotóxicos foram aprovados e o Brasil é hoje o principal mercado de “agrotóxicos altamente perigosos”, segundo a BBC.
Agora, diante de tantas ausências, o forró se fará presente na “não festa”, e a música de Flávio José aqui escolhida é a expressão poética do nosso sentimento, do que gostaríamos que o excrementíssimo senhor presidente da república soubesse:
“Você foi longe
Me machucando provocou a minha ira
Só que eu nasci entre o velame e a macambira
Quem é você pra derramar meu mungunzá”
Longe dos nossos familiares, isolados e não podendo manter o contato físico fundamental para que a magia do São João aconteça, o que nos resta é invocar nosso espírito de resiliência, de bravura e resistência, porque, parafraseando Euclides da Cunha, “o nordestino é, antes de tudo, um forte”. Estejamos em comunhão fraterna com os nossos, mesmo que à distância. Façamos uma comida e lembremos desse amor coletivo que nos move e sigamos o passeio, não o da roça, mais o da vida, enquanto ela pulsar!
Publicado originalmente no blog Marginália Social: https://marginaliasocial.wordpress.com/2020/06/24/sao-joao-no-nordeste-quando-o-espirito-coletivo-nos-da-animo-para-continuar-reexistindo-em-tempos-de-pandemia/