Maria Anunciada, Puta Rubra

Enfim, fez a fama e deitou na cama (como diz o ditado), honrou-se em aceitar um vulgo como segunda graça. Primeiro ser a Maria Anunciada cuja coragem era própria, e depois a Puta Rubra, peça íntima vergonhosa dos seus parentes. E por que? Se ela não admitia destino nem domínio público. Leia do princípio, ou melhor, do final, início e meio.

Nascida nos anos 80, ela era natural de uma cidade metropolitana e folclórica do nordeste, de família um tanto hipócrita e preconceituosa, lar onde os valores se absorviam a partir de livros e superstições, pouco restava desse complexo para sua base de princípios realmente construtivos.

Maria foi durante a infância e juventude, um experimento da vida, naquela moça de olhar vibrante e ao mesmo tempo solitário, havia uma aguçada ânsia por ser ela mesma, descobrir os seus talentos e prosperar por méritos.

Nada nela era tão comum a idade, as suas travessuras, o papo apaixonado das garotas de escola e as descobertas do corpo que exalava perfumes, tinha sempre um traço que assinava com suas iniciais.

Anos antes de decidir tornar-se independente, cursou o ensino médio em tempo regular, época da sua jornada que lhe acendeu a chama por fazer a diferença, ela não queria ser apenas a aluna exemplar, do tipo com tom de voz sereno e formal que todos apontavam como “a inteligente”.

Quando ingressou na faculdade, já existia em suas inspirações uma lua que almejava ser cheia. E assim, não realizou o sonho dos pais nem embarcou na carreira que perseguia a procrastinada família, titulação (rótulos) não era seu foco inicial, ela sabia que esta etapa seria conquistada em razão da dedicação, do raciocínio e das regras que escolheria para seguir. Formou-se em Artes Cênicas!

Como a maioria dos atores, construía personagens a cada passagem de cena. Anunciada era dedicada e tinha uma presença muito viva enquanto atuava, vestia seu personagem como um pacto de amor a arte, o que claro lhe destacava na profissão. O mercado das artes lhe consagrava!

Enquanto na sua vida particular conduzia tudo sozinha, com a premissa que cada esforço valeria a pena, bastava ter certeza do que queria e não desrespeitar as suas regras. Porém, esse ar de autonomia nunca lhe subiu a cabeça, e em meio a tantos compromissos sabia conciliar o momento com seus familiares, jamais demonstrou indiferença.

A dificuldade de convívio não partia dela, mas ela era um importante tema causador das crises entre os parentes. Maria Anunciada tinha fôlego de sobra quando se tratava de defender direitos e falar verdades, até ela mesmo se punia às vezes com tamanha franqueza que lhe causava aflição quando, por impulso, percebia-se extremamente impetuosa.

A cada dia crescia na sua forma de mulher resoluta, dama nada amistosa que se posicionava para a batalha antes mesmo de sonhar com a realização. Uma diva dos palcos e merecedora de aplausos, mas que a sanha da inveja lhe secava até a distância.

Numa das idas para visitar os pais, Maria descobriu que haviam criado uma bolha individual para colocá-la, isso claro, além da bolha conjunta que eles já viviam. De fato se tratava de um desprezível padrão bolhoso de seres fracassados. A fama de filha corrompida do casal Silva Santos se propagava na redondeza, era tão venenosa que matava pelo toque na pele sem nem precisar chegar às vias sanguíneas.

Ela sentia seu espaço entre eles diminuído a cada dia, a cada infeliz visita na tentativa de resgatar os laços afetivos. Filha única e de coração partido, porque seus sentimentos eram fortes e verdadeiros, a Maria dos palcos e do brilho no olhar, concordou desistir daquela aliança, e sem falar uma só palavra, saiu daquela cena da vida real, ofendida, oprimida e vazia.

Nesse mesmo período, namorava um ilustre rapaz, um administrador de empresas bastante talentoso e dedicado, cada dia ao seu lado contribuía para aumentar a felicidade e ela transbordou de amor ao ponto de casar-se e ter filho.

A atriz espirituosa, cheia de brilho e entrega à profissão, dedicava-se também ao matrimônio. Conquistou um tesouro triangular apaixonante, era Maria, José Vinícius seu marido e Pedrinho, um menino sapeca e carinhoso.

No entanto aquela mulher de brios reluzentes guardava um desejo que há muitos anos planejava realizar, ela teria jurado na sua formatura ao seu coração que a sua profissão seria consolo para muitos, e que em forma de arte faria muitas pessoas renascerem para a vida e esperança. Maria então decide seguir a carreira de atriz em um projeto totalmente seu denominado “Arte pelo Resgate da Vida”.

A partir deste capítulo da sua trajetória, passou a elaborar trabalhos que apresentava em hospitais, clínicas de reabilitação, lares de acolhimento a pessoas que precisavam de ajuda, assim como, crianças, idosos, desabrigados, dependentes químicos e doentes de uma forma geral. Foram muitos eventos de sucesso, episódios de reconhecimento e preenchimento da alma.

O que Anunciada não imaginava estava diante dela. Em um dos asilos que ela se apresentava com toda benevolência e gratidão, estava interno o casal Silva Santos, que havia perdido o pouco que tinha, acumulando apenas doença e fragilidade.

Certa vez chamada pela direção do asilo, Maria atendeu a solicitação e seguiu por um corredor claro e ventilado, ao chegar à sala, observou a presença do diretor e de um casal de idosos.

Naquela imagem que por segundos congelou a sua frente, surgia um feche de luz que meio obscura e paralelamente solar, confundia um pouco as suas ideias, mas era nítido naqueles rostos enrugados, o retrato estático dos seus pais. Aqueles velhos parceiros de vida, choravam angustiados e gratos pela elucidação que a filha tinha doado para a vida de ambos (através da sua arte, seu trabalho).

A Maria Anunciada ou quem sabe a Puta Rubra lhes trouxe de volta o sorriso, quando surgiu segurando a mão do filho e com expressão distinta foi chamada de Senhora (das suas verdades).

Ela sorriu ainda trêmula e completou a cena, respondendo àquelas lágrimas do modo menos provável, Dizendo-lhes o seguinte: Para haver redenção e a consciência da legítima razão nos seus corações confusos e sobrepujados, eu afirmo a primeira graça e aceito a segunda. Vamos! Eu os levarei para casa.

CarlaBezerra

Divina Flor
Enviado por Divina Flor em 24/06/2020
Reeditado em 24/06/2020
Código do texto: T6986833
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