Brinquedo Chinês
Uma das lembranças mais marcantes da minha juventude foi quando ganhei de presente um telescópio do meu pai. Eu devia ter treze ou quatorze anos. E lá estava eu, embasbacado com a possibilidade quase onírica de ver as coisas tão distantes bem próximas do meu nariz. As belas silhuetas das vizinhas mundanas que habitavam o meu bairro de subúrbio, a famosa cratera Copérnico da lua, alguns planetas e as estrelas, meus interesses, nessa respectiva ordem. Depois, quando, deliberadamente, tomei posse de um pequeno manual de astronomia da biblioteca da escola, passei a me interessar também por toda sorte de objetos curiosos do céu noturno, diurno e o escambau. O entusiasmo era tamanho que no dia em que ganhei o objeto, nem sequer esperei o cair da noite para ver a lua. Antes do pôr do sol, lá estava eu: A postos. Mas, para desfazer o meu coração de mancebo impaciente, estávamos em dias nublados, chuvosos e nada convidativos para observações astronômicas. Me lembro que, entre impropérios e murmurações, cheguei até mesmo a amaldiçoar... as nuvens. Tamanha era a impaciência para ver se tudo aquilo que eu lera sobre Galileu era mesmo verdade; seus relatos das observações realizadas ao longo de sucessivas noites no longínquo ano de 1610 me fascinaram.
Numa noite, porém, uma coisa fantástica aconteceu. Guardarei comigo para sempre a memória desta noite. Porque eu não me continha de entusiasmo, meus pais permitiram que eu dormisse várias noites seguidas na casa dos meus avós, onde havia uma sacada formidável para observar o céu noturno e -- nem tudo são pétalas escarlates nessa rosa, há espinhos também -- para os espaços diurnos que revelavam uma extensão desmedida do nosso bairro de subúrbio, um lugar, para os mais sensíveis, fraco de feição. Dormir na casa dos meus avós era um evento mágico que somente acontecia em dias especiais da semana, para mim, sexta-feira. Mas, não era sexta-feira. E lá estava eu, aparvalhado. Já era chegada a madrugada e meus avós, inquietos com a minha insistência em permanecer no sereno da sacada, insistiam para que eu fosse para a cama. Resisti. Eu não sabia manejar com perícia aquela parafernália chinesa. O instrumento, claro, não era dos mais potentes, não era sequer profissional, mas, para a mente de uma criança, as exigências técnicas são de outra ordem. Nesses instrumentos ópticos, existem pequenos mecanismos instalados nos dois lados de um pequeno tubo, como cabeças de parafusos, através dos quais, pelo movimento de rosquear, o sujeito aproxima e afasta a imagem. É a tal da focalização que eu, nas noites do primeiro uso do equipamento, ainda não dominava.
Por isso, na tentativa de fazer com que as imagens capturadas ficassem nítidas, eu retirava a lente ocular e, com as próprias mãos, tentava focalizar a imagem projetada na lente objetiva do telescópio. É claro que funcionava, eu até dei pulos no ar quando consegui ler o letreiro de um supermercado que ficava muito distante de nossa casa e do qual só podíamos, a olho nu, distinguir as cores do prédio. Essa foi a primeira vez que experimentei o êxtase proporcionado por aquela maravilha óptica. Mas, os píncaros da experiência só seriam atingidos no alto da madrugada. E eis que, no sereno da imensa sacada da casa dos meus avós, algo mágico aconteceu: eu vi as crateras da lua! Uma torrente de emoções jorrou através daquele corpo franzino de menino. Não pude acreditar. Gritei, quis chorar. Chamei a minha mãe, a minha vó, os meus primos, quis acordar a todos. Só o meu avô veio, trajando seu samba canção, cambaleando de sono, mas com os olhos esbugalhados. Viu o que eu vi, mas, contrariando o meu bom senso de criança, me obrigou a guardar aquele troço e ir dormir. Custei a pegar no sono.