Hora de dormir

00:46

A luz e a vozinha vindas do quarto do Kauã indicavam que aquele pequeno ser de dois aninhos, apesar de toda agitação do dia, ainda estava acordado.

Ana Lúcia abriu a porta do quarto e viu o menino muito ocupado com um leão e um hipopótamo, dois de seus brinquedos favoritos. Estava sentado na cama, mas se sentia no meio de uma floresta.

- Meu filho, tá muito tarde. Você tem que dormir. E a mamãe também...

- Não qué dumi, qué bincá [“não quero dormir, quero brincar”, tradução para o leitor que não está mais habituado com esse dialeto da primeira infância. Mas este tipo de interferência se encerra aqui e o leitor desabituado terá de visitar suas lembranças afetivas e tentar entender, por si mesmo, outras palavras que aparecerão adiante].

- Amanhã, você brinca. Aliás, hoje né... Já passa da meia-noite.

- Quê? O que você dizeu, mãe?

- Falei que você deve brincar depois que ficar claro de novo.

- Amanhã, quando tinha dia, eu binquei.

- Não, filho, você brincou ontem... Mas isso não importa. O que importa é que tá tarde, tá escuro e quando não estiver mais escuro, aí você pode brincar... Agora, você tem que dormir.

- Mas, mãe... mãe, não tô com sono.

Ana Lúcia decidiu, então, consultar alguma estratégia em sua memória materna, espécie de manual mágico com segredos conhecidos apenas pelas mães. Numa mistura, sem lógica, de corpo cansado e com pressa de voltar para a cama e de mãe que passaria a eternidade com o filho, ela se senta ao lado de Kauã e lhe faz uma proposta:

- Filho, vamos fazer o seguinte: você fica deitadinho e a mamãe deita do seu lado até você dormir.

- Tá.

Cinco segundos depois, Kauã dá pistas de que vai descumprir o acordo:

- Mas mãe, eu não qué dumi...

- Filho, você precisa dormir... Vou contar uma historinha. Tá bem?

- Tá.

- Era uma vez um leão...

- Igual o meu leão?

- Na verdade, é o seu leão.

A criança vibra os olhos de interesse. Ana Lúcia o quer interessado, mas nem tanto... Mesmo assim, continua:

- Era um leão valente, forte e muito feliz. Tinha muitos amigos e o maior deles era o hipopótamo...

- Este hipototo aqui?

- Sim, filho, esse mesmo. Certa vez, o leão e o hipopótamo brincaram bastante, bastante, bastantão... Ficaram muito cansados.

- Eu binquei bastantão amanhã, quando não tinha escuro...

- Ontem, meu filho. Foi ontem que você brincou... Mas, voltando à história... O leão e o hipopótamo brincaram muito, muito. Foi ficando noite, escuro, escuro – Ana Lúcia ia, aos poucos, baixando o tom da voz, quase sussurrando, buscando fazer da história uma canção de ninar. – Depois, ficaram cansados, cansados, bem cansados... O leão se deitou em seu castelo na floresta e dormiu como um rei, dormiu gostoooso. E o hipopótamo abriu o bocão de tanto sono, bocejou...

- Igual meu hipototo... Ó, o bocão dele aberto, mamãe... Grrr – imitou um animal feroz, aproximando o brinquedo da mãe.

- Sim, filho, igual seu hipopótamo... Continuando. O hipopótamo do Kauã, de tão cansado, abriu o bocão e dormiu.

- E depois, mãe?

- O leão e o hipopótamo dormiram. É o fim da história.

O menino fez carinha de decepcionado com o desfecho e pediu:

- Conta ota historinha.

01:15

- Filho, eu vou contar só mais uma historinha, aí você dorme...

A criança deu um sorrisinho como resposta.

- Era uma vez um dragão e um príncipe. Os dois eram muito amigos...

- Mãe?

- Que é?

- Eles são amigos?

- Sim, Kauã.

- E eles também vão ficá cansados e dumi?

Ana Lúcia riu, porque era essa sua ideia. Iria repetir a dose do mesmo remédio, mas foi descoberta.

- Espertinho você, meu filho...

Consultou, novamente, em sua memória, o “livro mágico” das mães. De lá, tirou uma excelente ideia.

- Filho, que tal a gente brincar de quem fica mais tempo com os olhos fechados?

- Tá bom.

- Vamos lá. Um, dois, três e já.

Os dois fecharam os olhos. Kauã estava coladinho em sua mãe, escondendo o rosto sob o braço dela.

- Kauã, assim não vale. Você não pode esconder o rosto.

- Ué, você tá me vendo, mamãe?

- Tô.

- Mas você tá me vendo com olho fechado ou com olho aberto?

- Aberto, né.

- Então, eu ganhei.

- Vamos de novo. Um, dois, três e já.

Ana Lúcia não fechou os olhos. Depois de dois minutos, acreditou que seu plano estava dando certo, mas sentiu pequeno remorso. Resolveu jogar limpo.

- Filho, você ganhou.

- Eba! Sou campeão.

- Sim, você é o campeão da mamãe. Agora, o campeão tem que dormir.

- Vamo ota vez.

Ana Lúcia concordou, na esperança que aquele jogo pudesse fazer a criança dormir. No entanto, depois da quinta ou sexta partida, quem cochilou foi ela.

- Mamãe, mamãe, você dumiu? – perguntava e empurrava o braço de Ana Lúcia.

Ela acordou e ficou olhando o filho. Ele estava quietinho, mas com os olhos bem abertos.

02:03

Ana Lúcia, dividindo espaço na pequena cama com Kauã, sentia-se desconfortável. As pernas começavam a doer, sinalizando que o corpo cansado já estava impaciente para retornar à cama, para outra cama, a grande, a espaçosa e aconchegante.

Quando Kauã ia quebrar o silêncio com um “mamãe”, Ana Lúcia pediu para ele ficar quietinho. A criança obedeceu e os dois ficaram escutando as vozes da noite, com destaque ao cri-cri de um grilo.

- Mamãe? – insistiu o menino.

- Psiu. Fica bem quietinho pra escutar o barulhinho do grilo.

Kauã não estava interessado em grilo. Nesse “jogo de dorme-não-dorme”, ele derrubou outra estratégia da mãe.

- Eu não qué ficá quietinho pá dumi.

O cansaço fez Ana Lúcia impor sua impaciência:

- Chega, Kauã Filipe! Fecha os olhos e dorme!

A mudança repentina no tom da voz e na expressão da mãe assustou o menino. Sua resposta foi no mesmo nível: choro.

Ana Lúcia, aceitando a derrota, por um lado, e, por outro, lembrando-se de que havia ali seu filho de dois anos, decidiu aumentar a carga de carinho. Puxou-o para mais perto e fez a tão aguardada pergunta:

- O que foi, meu filho? Você não quer dormir?

- Não qué.

A criança, que continuava com carinha de choro, tentou se aproximar, o máximo possível, de Ana Lúcia. Queria recuperar a mãe, que temeu perder naquele grito de “fecha os olhos e dorme”. Fez dois pedidos na esperança de retornar ao lugar seguro dos primeiros meses de vida:

- Mamãe, qué coio.

Ana Lúcia o pegou no colo. O segundo pedido:

- Mamãe, pode mamá no peito?

Ela o amamentou. Depois, ficaram conversando amenidades.

- Mamãe, que bichinho é esse?

Era uma lagartixa.

- Lagatiça? E como ela não cai dessa paiede de cima?

- Chama-se teto, meu filho... Ah, não sei, ela deve ter um tipo de colinha nas patinhas.

O menino, fazendo da mãe todo o seu mundo e mostrando que a vida toda dependia dela, retomou os pedidos. Quis água e, depois, leite quente.

02:43

Apesar do incômodo e da dor nas pernas, Ana Lúcia seguia do lado do filho, que não dormia. Deu-se por vencida:

- Tudo bem, meu filho. Você não consegue dormir. Então, vamos ficar acordados esperando o caminhão de lixo.

Kauã adorava esse caminhão, que passava, alguns dias da semana, no início da manhã. Em seu mundo, era um monstro devorador de sacos de lixo. Tinha aquela bocarra enorme e faminta. Os homens saíam correndo para pegar os sacos e alimentar o monstro-caminhão. Era demais! Kauã amava ver esse monstro em ação.

- Tá bem, mãe – concordou, contente.

- Mas, olha só, temos que conversar baixinho para não acordar o Pluto.

Ela se referia ao destrambelhado cãozinho da família. Era um cachorro marrom da raça bloodhound, a mesma do personagem da Disney. Era, de fato, o Pluto.

E os dois seguiram conversando. Kauã bocejava. Ana Lúcia bocejava. As perguntas e as respostas foram ficando mais espaçadas até o silêncio se tornar senhor da situação.

Pouco a pouco, a criança era vencida pelo sono. Mas não tirava a mãozinha de Ana Lúcia. Era sua forma de se certificar que a mãe continuava ali. Por fim, o inesperado: o menino dormiu. E a mãe... também.

Minutos depois, Ana Lúcia acordou. Tentou não mexer um músculo, mesmo sentindo o braço esquerdo adormecido e câimbra nas pernas. Após algum tempo, sentindo-se segura, olhou as horas – eram 4:05. Afastou, com muito cuidado, a mão do filho e o ajeitou na cama. Ele continuava dormindo. No rostinho, havia um sorriso sereno de quem se sente protegido, cuidado. Certamente, sonhava com caminhões de lixo, com lagartixas, grilos, príncipes, dragões, leões, hipopótamos e... com sua mãe.

Com passos de algodão, Ana Lúcia se dirigiu à porta e, antes de apagar a luz e deixar o quarto, contemplou o filho. Linda imagem. A paz daquela criança beijou seu coração. Apesar de todo cansaço, ela sentia a alma viajar para a beira de um lago, com ar puro, a água espelhando a luz do sol em fim de tarde. Ataraxia, êxtase... Nenhuma palavra ajuda. Os lábios se mexeram numa declaração silenciosa. Não houve som, por ser impossível. Nossa pobre linguagem, incapaz de alcançar aquele sentimento intenso, único, pode, no máximo, esforçar-se para expressá-lo. Aquela mãe, por inteira, com sua câimbra, com seu cansaço, com sua felicidade, gritava em sua alma:

- Filho, eu te amo.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 17/06/2020
Reeditado em 17/06/2020
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