SE FOR PRA MORRER, EU QUERO MORRER DE VEZ!
- Crônica do dia 16-06-2020 -
Eu sonhei que estava correndo. Não sei bem onde, só sei que estava escuro. Nada conseguia ver, nem ouvir, mas sabia que tinha alguém me perseguindo. Acordei com sede, a noite estava bastante quente, o cricrilar dos grilos afoitos no mato, e o zunido das muriçocas zoando no meu pé do ouvido, ajudaram a acordar-me com uma tapa que dei em meu próprio rosto.
Que raiva, elas sempre me pegam! Pelo o menos o meu dente hoje está doendo menos. Acho que vai ficar bom, ainda mais depois que fiz promessa pra Santa Apolônia, essa, nunca há de falhar!
Levantei a cabeça, e, com um impulso, joguei o corpo pra frente e fiquei de pé no colchão.
- Aaaahhhhh... – Me espreguicei bem gostoso arribando os braços e bocejando bem forte, mas tentando manter o silêncio pra não acordar as garotas. Olhei para os, literalmente, quatro cantos da casa.
As paredes de compensados que recolhi nas demolições de stands de venda de apartamentos dos bairros ricos. Dois colchões de mola que eu recolhi do lixo de uma loja de colchões onde estavam deitadas os meus maiores tesouros, minhas três netas, minha filha mais nova e minha “véia”. Eram elas que me davam coragem de todos os dias enfrentar o dia seguinte.
Minha neta mais nova é esperta, tem nove anos de idade e já sabe a tabuada completa, sabe ler, sabe escrever e sabe até as capitais dos Estados! Acho que ela vai conseguir um emprego bom, quando crescer, coisa de escritório, sem ter que ficar limpando banheiro dos outros. Sei lá... Secretária, recepcionista, quem sabe até ela consiga chegar a ser professora!
Ela vive dizendo que quer ser médica. Bichinha... Deixa ela sonhar, vai que acontece né? Um tempo desse, quando Lula era presidente, formou mesmo um bocado de médico que era filho de pobre, quem sabe ele vence essa parada aí e volta de novo? "Se ele vim deiz veis pra presidente, deiz veiz eu voto nele". Porque no tempo que ele governava, nunca vivi um dia de fome. Pensei até que isso tinha acabado.
Senti minha “barriga roncar”.
Um calafrio percorreu todo o meu corpo e fez com que minha pele se arrepiasse. Senti medo. Medo das garotas acordarem antes que eu conseguisse encontrar alguma coisa na rua para que elas possam comer. Já são cento e trinta e cinco dias desde o que o que chamam de caso “número hum” aconteceu, e três dias desde que a cesta básica que a prefeitura deu acabou.
Todo ano é um vírus, todo ano é uma crise, todo ano é um “pobrema”.
- Acho que eu sou burro mesmo! Esses político são tudo é ladrão! NÃO PRESTA UM! Não presta um... – Fiquei dizendo, pra mim mesmo, enquanto dobrava a coberta, tomado pela raiva de viver naquele cômodo imundo em que eu sou obrigado a viver junto com os ratos e comer sentindo fedor da merda de todo mundo que mora nessa porra deste "AGLOMERADO SUBNORMAL".
Se bem que eu já nem vejo muita diferença, afinal, toda vez que Deus manda água limpa do céu, a minha casa fica cheia de merda de esgoto. E vem me falar de COVides, Convide, Covi... 19, esta "peste bubônica" que apareceu aí que “truxero” da puta que o pariu!
Eu lá tenho medo desse diabo!
Eu to começando a achar é que esse tal vírus é que tem que ter medo de mim.
Não me lembro de ter tomado vacina na vida. Eu acho tão legal quem tem aquela cicatriz no braço direito. Peguei todo tipo de doença que um “cristão” pode ter na vida. Sarampo, bexiga, catapora... Eu vejo esses meninos da cidade pegarem catapora. O menino nem sofre!
Tem um tal dum “carrrdo vremeio” que eles chama PREMAGANATI que o menino se banha e “os coro nem coça”! O menino da patroa lá de u’a casa que eu trabaiei perto da Avenida Brigadeiro Antônio Luís, era assim!
Eu tive catapora até dentro dos olhos que quase fiquei cego do esquerdo. Minhas carnes todas se tremiam como se eu estivesse sendo perseguido pelo “frio de Garanhuns”. "Visage" eu tinha “muitchas”, a derradeira que eu vi foi de minha mãe olhando pra mim, me carregando em seu colo.
Eu já nem sentia o braço magro de minha mãe me segurando, nem sequer bem o balançar. Toda a terra já rodava. Eu sentia minha mãe andando comigo, e eu com nove anos, desnutrido, já doente há bastante tempo, pulando da quase morte de uma doença, pra a quase morte da outra.
E pensar que antes daquele dia eu até estudava!
Sim... Na escola e tudo! Tá certo que eu tinha que ficar a aula inteira em pé na frente do quadro pra poder estudar porque nasci com uma miopia miserável, mas eu ia pra escola! Até que descobriram que eu estava com “bexiga lixa”. De lá pra cá, minha vida foi assim.
Quando a lágrima de minha mãe molhou o meu rosto, eu puxei o ar profundamente, como se tivesse despertado de um longo sono. Minha mãe revezava seus olhos entre os céus, o caminho do hospital e eu. Era nítido o desespero em seu rosto, ela caminhava e repetia palavras que eu não conseguia entender o que diziam, mas sabia que ela estava rezando.
Fiquei olhando para ela compenetrado. Achei curioso aquilo tudo, eu simplesmente acordei e puxei o ar muito fundo, e senti muito prazer em respirar, como se há muito tempo não o pudesse. Meu coração batia forte. Podia senti-lo pulsar fortemente em minha caixa torácica.
Vi quando ela entrou no hospital, apenas pelo portal de entrada e as pessoas no corredor.
- Doutora Quitéria, pelo amor de Deus, salva meu filho!!!
Minha mãe implorou chorando para a única médica da cidade. Não fosse ela, nenhum atendimento médico existiria no local. Doutora Quitéria olhou pra minha mãe com os olhos marejados, pegou os óculos que estavam dependurados em seu pescoço, por uma cordinha e colocou em seu rosto. Se aproximou, pude ouvir o som dos passos vindo em nossa direção. Minha mãe não parava de me balançar.
A mão da doutora Quitéria veio em minha testa, aquela mão gelada me fez arrepiar o pé do pescoço. Eu fechei os olhos e respirei gostoso. Juro que já estava começando a me sentir melhor, até o frio já estava começando a passar. Meu corpo estava ficando leve... Tão leve...
Senti um troço gelado apertando o meu peito. Doeu. Era ela encostando em mim aquele negócio que serve pra escutar coração.
- Não tem mais jeito não, Dona Maria, leve pra casa...
- Mas doutora... – Minha mãe começou a me balançar mais rápido, e a chorar mais compulsivamente. Ela não escondia o desespero.
- Não tem mais nada o que fazer...
Bem, aqui estou! Acho que esse tal vírus que tá aí não é tão forte assim não. Até o presidente pegou. É como o próprio presidente falou “só vão morrer os velhos e os doentes”. Afinal, é a vida mesmo. Tomara que quando eu estiver velho e doente apareça um vírus desse aí pra me levar, que “pelo o menos assim eu não fico dando trabalho para os outros”.
Se for pra morrer, eu quero morrer de vez! Que pelo o menos eu não fico dando trabalho pra ninguém. Morrer dormindo... Isso sim é um sonho possível de sonhar.
Graciliano Tolentino
- Crônica do dia 16-06-2020 -
Eu sonhei que estava correndo. Não sei bem onde, só sei que estava escuro. Nada conseguia ver, nem ouvir, mas sabia que tinha alguém me perseguindo. Acordei com sede, a noite estava bastante quente, o cricrilar dos grilos afoitos no mato, e o zunido das muriçocas zoando no meu pé do ouvido, ajudaram a acordar-me com uma tapa que dei em meu próprio rosto.
Que raiva, elas sempre me pegam! Pelo o menos o meu dente hoje está doendo menos. Acho que vai ficar bom, ainda mais depois que fiz promessa pra Santa Apolônia, essa, nunca há de falhar!
Levantei a cabeça, e, com um impulso, joguei o corpo pra frente e fiquei de pé no colchão.
- Aaaahhhhh... – Me espreguicei bem gostoso arribando os braços e bocejando bem forte, mas tentando manter o silêncio pra não acordar as garotas. Olhei para os, literalmente, quatro cantos da casa.
As paredes de compensados que recolhi nas demolições de stands de venda de apartamentos dos bairros ricos. Dois colchões de mola que eu recolhi do lixo de uma loja de colchões onde estavam deitadas os meus maiores tesouros, minhas três netas, minha filha mais nova e minha “véia”. Eram elas que me davam coragem de todos os dias enfrentar o dia seguinte.
Minha neta mais nova é esperta, tem nove anos de idade e já sabe a tabuada completa, sabe ler, sabe escrever e sabe até as capitais dos Estados! Acho que ela vai conseguir um emprego bom, quando crescer, coisa de escritório, sem ter que ficar limpando banheiro dos outros. Sei lá... Secretária, recepcionista, quem sabe até ela consiga chegar a ser professora!
Ela vive dizendo que quer ser médica. Bichinha... Deixa ela sonhar, vai que acontece né? Um tempo desse, quando Lula era presidente, formou mesmo um bocado de médico que era filho de pobre, quem sabe ele vence essa parada aí e volta de novo? "Se ele vim deiz veis pra presidente, deiz veiz eu voto nele". Porque no tempo que ele governava, nunca vivi um dia de fome. Pensei até que isso tinha acabado.
Senti minha “barriga roncar”.
Um calafrio percorreu todo o meu corpo e fez com que minha pele se arrepiasse. Senti medo. Medo das garotas acordarem antes que eu conseguisse encontrar alguma coisa na rua para que elas possam comer. Já são cento e trinta e cinco dias desde o que o que chamam de caso “número hum” aconteceu, e três dias desde que a cesta básica que a prefeitura deu acabou.
Todo ano é um vírus, todo ano é uma crise, todo ano é um “pobrema”.
- Acho que eu sou burro mesmo! Esses político são tudo é ladrão! NÃO PRESTA UM! Não presta um... – Fiquei dizendo, pra mim mesmo, enquanto dobrava a coberta, tomado pela raiva de viver naquele cômodo imundo em que eu sou obrigado a viver junto com os ratos e comer sentindo fedor da merda de todo mundo que mora nessa porra deste "AGLOMERADO SUBNORMAL".
Se bem que eu já nem vejo muita diferença, afinal, toda vez que Deus manda água limpa do céu, a minha casa fica cheia de merda de esgoto. E vem me falar de COVides, Convide, Covi... 19, esta "peste bubônica" que apareceu aí que “truxero” da puta que o pariu!
Eu lá tenho medo desse diabo!
Eu to começando a achar é que esse tal vírus é que tem que ter medo de mim.
Não me lembro de ter tomado vacina na vida. Eu acho tão legal quem tem aquela cicatriz no braço direito. Peguei todo tipo de doença que um “cristão” pode ter na vida. Sarampo, bexiga, catapora... Eu vejo esses meninos da cidade pegarem catapora. O menino nem sofre!
Tem um tal dum “carrrdo vremeio” que eles chama PREMAGANATI que o menino se banha e “os coro nem coça”! O menino da patroa lá de u’a casa que eu trabaiei perto da Avenida Brigadeiro Antônio Luís, era assim!
Eu tive catapora até dentro dos olhos que quase fiquei cego do esquerdo. Minhas carnes todas se tremiam como se eu estivesse sendo perseguido pelo “frio de Garanhuns”. "Visage" eu tinha “muitchas”, a derradeira que eu vi foi de minha mãe olhando pra mim, me carregando em seu colo.
Eu já nem sentia o braço magro de minha mãe me segurando, nem sequer bem o balançar. Toda a terra já rodava. Eu sentia minha mãe andando comigo, e eu com nove anos, desnutrido, já doente há bastante tempo, pulando da quase morte de uma doença, pra a quase morte da outra.
E pensar que antes daquele dia eu até estudava!
Sim... Na escola e tudo! Tá certo que eu tinha que ficar a aula inteira em pé na frente do quadro pra poder estudar porque nasci com uma miopia miserável, mas eu ia pra escola! Até que descobriram que eu estava com “bexiga lixa”. De lá pra cá, minha vida foi assim.
Quando a lágrima de minha mãe molhou o meu rosto, eu puxei o ar profundamente, como se tivesse despertado de um longo sono. Minha mãe revezava seus olhos entre os céus, o caminho do hospital e eu. Era nítido o desespero em seu rosto, ela caminhava e repetia palavras que eu não conseguia entender o que diziam, mas sabia que ela estava rezando.
Fiquei olhando para ela compenetrado. Achei curioso aquilo tudo, eu simplesmente acordei e puxei o ar muito fundo, e senti muito prazer em respirar, como se há muito tempo não o pudesse. Meu coração batia forte. Podia senti-lo pulsar fortemente em minha caixa torácica.
Vi quando ela entrou no hospital, apenas pelo portal de entrada e as pessoas no corredor.
- Doutora Quitéria, pelo amor de Deus, salva meu filho!!!
Minha mãe implorou chorando para a única médica da cidade. Não fosse ela, nenhum atendimento médico existiria no local. Doutora Quitéria olhou pra minha mãe com os olhos marejados, pegou os óculos que estavam dependurados em seu pescoço, por uma cordinha e colocou em seu rosto. Se aproximou, pude ouvir o som dos passos vindo em nossa direção. Minha mãe não parava de me balançar.
A mão da doutora Quitéria veio em minha testa, aquela mão gelada me fez arrepiar o pé do pescoço. Eu fechei os olhos e respirei gostoso. Juro que já estava começando a me sentir melhor, até o frio já estava começando a passar. Meu corpo estava ficando leve... Tão leve...
Senti um troço gelado apertando o meu peito. Doeu. Era ela encostando em mim aquele negócio que serve pra escutar coração.
- Não tem mais jeito não, Dona Maria, leve pra casa...
- Mas doutora... – Minha mãe começou a me balançar mais rápido, e a chorar mais compulsivamente. Ela não escondia o desespero.
- Não tem mais nada o que fazer...
Bem, aqui estou! Acho que esse tal vírus que tá aí não é tão forte assim não. Até o presidente pegou. É como o próprio presidente falou “só vão morrer os velhos e os doentes”. Afinal, é a vida mesmo. Tomara que quando eu estiver velho e doente apareça um vírus desse aí pra me levar, que “pelo o menos assim eu não fico dando trabalho para os outros”.
Se for pra morrer, eu quero morrer de vez! Que pelo o menos eu não fico dando trabalho pra ninguém. Morrer dormindo... Isso sim é um sonho possível de sonhar.
Graciliano Tolentino