Procrastinar

Ao escovar os dentes em frente ao espelho, sou levado por leve meneio de cabeça à altura de um calendário afixado à parede. Esse calendário me avisa que junho chegou. Dou-me conta, agora, que metade de 2020 foi gasta não sei onde. Lembro que janeiro foi anteontem, ontem foi o Carnaval —e como assim hoje é junho?

O calendário me espreita; quer saber se vou responsabilizá-lo por prevaricação, o que, óbvio, como diria Trimagassi, não se aplica ao caso. Ele está apenas cumprindo com seu dever de informar; não prevarica —e principalmente, ao contrário de nós, mortais, não procrastina. Exatamente por ser assim tão profissional em seus afazeres, retirei-o da parede da sala de não-estar. Toda vez em que ia da sala à cozinha deparava com ele, a me advertir sobre minhas obrigações civis, a lembrar-me os dias ''úteis'' da semana. Ocupava a casa inteira, apesar de não declarar oficialmente.

Um dia resolvi transgredi as regras decorativas do lar. Sem o consentimento de mãe e persuadido do dito popular segundo o qual "O que os olhos não veem o coração não sente", retirei-o da parede da sala de não-estar e o pus na do banheiro. Mas, agora, sei que foi uma ideia malsucedida.

É muito profissional esse calendário. Preciso encontrar outro lar para ele. Não falha um dia, não erra uma data, acerta todas as semanas, corre todos os meses, não interrompe dezembro. Preciso pará-lo, mas, como diria "Bartleby, o escrivão" (de Melville), prefiro não fazer. Prefiro procrastinar.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 13/06/2020
Reeditado em 13/06/2020
Código do texto: T6976058
Classificação de conteúdo: seguro