As palavras paridas para onde vão?
As palavras apesar de poderosas e de seu caráter de enxurrada, detêm também o incrível poder da escassez. Secam-se facilmente na nascente de alguns interesses. É fácil observar. Começando pela nossa mais natural forma de expressão: a fala. Todo começo é verborrágico e escorre leve em uma profusão de assuntos e histórias e confissões e importâncias e conversas fiadas.
No entanto, como as águas de um rio que segue seu fluxo, elas passam. A estiagem chega com hora marcada e as longas conversas, a cada dia mais raras, passam a caracterizar-se por um projeto monossilábico reduzido à quase nada, até que acabam. E há quem diga que é egocentrismo sentir-se culpado e achar que fez ou falou algo errado para que a seca comece. A verdade é que não é. Se as águas continuam fluindo normalmente em outras direções, não há como pensar diferente.
Não é olhar para o umbigo e se dar muita importância. É constatar e aceitar que o leito de nosso rio já não atende mais e nem comporta o correr das palavras de alguém. O olhar desinteressado para o jardim é muito claro. Se o léxico permanece abundante para todos e conosco a nascente secou, não há essa de: Por que a culpa é sua? As direções mudaram e você não é o centro do universo. Para o outro, Sempre é. Não há maneira mais cruel de matar alguém do que a tortura de deixá-lo pensar: O que eu fiz? enquanto as palavras correm normalmente por aí incapazes de responder a esse questionamento.
Tanto as palavras secam que igualmente na escrita surgem os bloqueios, os lapsos, os brancos e a modalidade da língua coberta do véu da formalidade e do cuidado também não é sempre um forma impecável. Assim, textos ficam por escrever, leituras seguem incompletas umas após as outras e há tantas mensagens e declarações ignoradas.
Quantas palavras jogadas fora e quanto: não foi bem isso o que eu disse, não temos nada pra falar, ou pior: Eu nunca disse isso! Reduzidas a objeto sem valor, fazem-me lembrar de quando era suficiente dizer: Eu te dou a minha palavra! Não sem motivo o livro sagrado diz que daremos contas a Deus até mesmo daquelas ditas em momento de ócio.
Anteontem, passando pelo município vizinho vi livros jogados pela calçada. Páginas amarelas que pareciam ter fugido do lixo, negando-se a morrer abandonadas. Palavras pelo chão, sujas e desprezadas. Encantada, parei e olhei, seduzida pelo pequeno amontoado despercebido. O único livro aparentemente inteiro era um livro do Nietzsche chamado O Anticristo.
Venci o ímpeto de trazê-lo comigo, pois alguma traça ou algo parecido poderia corroer e macular as minhas muitas outras palavras limpas e organizadas. Meu estômago sentiu-se vazio diante da cena e da minha falta de coragem . Era um livro ainda não lido por mim e apesar de não me sentir atraída por um homem que afirma do alto de sua prepotência que Deus morreu, as palavras sempre me chamam. Mesmo nesses casos em que minha prepotência, reconhecedora de finitude, não converge com a prepotência do autor e crítico de tudo aquilo em que me reconheço e me reanimo. As críticas sempre são bem-vindas e muito importantes.
No dia seguinte, passando pela mesma calçada suja vi que as folhas soltas e as obras sem título continuavam ali, menos o livro do Nietzsche. Será que alguém levou o Anticristo para casa deixando de lados as outras páginas sem nexo e sem completude? Não saberei o destino do livro descartado tal como nunca saberei os destino das palavras ditas e que não voltam. O que acontece no final do livro? O que acontecem quando as palavras secam? E as palavras que nunca serão ditas e nunca verão a luz? No fim, segue-se apenas a máxima desgastada e mentirosa que garante que o vento as leva.
Para onde?