Crônica intempestiva

Precisei parar o texto de T. em razão de um estalo na cabeça que não me deixou seguir. Uma lembrança daquelas que vem do profundo, como Leviatã ou como uma azia inesperada. Era a imagem de um brinquedo infantil. Benjamin, valei-me nessa hora! O brinquedo, a infância, no meu caso não berlinense, mas roçaliano, expressão que aprendi no Vale do Jequitinhonha, onde fui ter mais um de meus muitos renascimentos, das cinzas, embora tenha chegado lá ainda no carnaval de 2001.

Perco-me em digressão vã. Falava do texto. Não, do texto não. Do brinquedo. A pois (essa aprendi com o mestre Elomar, tropeiro de versos, notas e bodes). E o noticiário da pandemia? Preciso checar os números, ver o avanço (?!) dos casos.

E a análise política? Meu navegador (não seria melhor “náufrago”?) já registrou as palavras: “brasil política crise”, trazendo-me catástrofes sobrepostas de imbecilidades. T. me adverte da irrelevância da política diante de questões maiores da vida, o que ele aprendeu da conversa de Antonio com João, este que por sua vez o aprendera do sertão que lhe cuspiu cedo, três dias depois de ter-se tornado imortal.

[Júlia abre a porta pedindo dica de filmes na TV. Eu preciso dizer que ela deve se virar, mas a pedagogia é a arte do discurso, então levo uns minutos. Sinto que, neste intervalo, o texto perdeu parte de sua força expressiva. Chego a perceber a fome que sinto, sinal de que a possessão inspiradora que me tomara no início se desfez. Invocarei de novo o espírito. Virá? Tranquilo e infalível].

O brinquedo. Tenho pouco tempo. Há um tese a ser escrita e defendida. Que irá para o repositório da Universidade, só consultado por quem precisa escrever novas teses a fim de depositá-las, perdoem-me o trocadilho, no repositório. E há a carta a ser respondida a T.

Então começo, por fim.

Era um quadro de cerca de 50 centímetros de altura e uns 30 de largura. Mas me parecia do tamanho da igreja de Aparecida do Norte quando entrei pela primeira vez. 1986, a viagem da minha infância. Mas isso é pra outra crônica.

O quadro. Tinha os 25 dias do mês de dezembro, até o natal. A cada dia abria uma janelinha. E uma revelação se dava. A primeira vez foi mágica. Refiz o exercício muitas vezes fingindo não saber o conteúdo. Verdades bíblicas, mensagens curtas, uma imagem. Pastores, cajados, paisagens palestinas, cenas de milagres. Era um conteúdo mais ou menos familiar, naquele universo microcósmico religioso católico que me envolvia, segundo útero depois do primeiro.

Mas porque me vem à memória isso? Porque o texto de T., que aguarda leitura na janelinha minimizada de minha tela, dançou na minha frente com tal leveza que me fez sentir coisas de forma muito semelhante ao que me fazia aquele brinquedo. E não era verdade que a cada quadrinho aberto eu construía mundos e descobria quem era ela, a verdade? A pressa de saber tudo e a paciência disciplinada de aguardar um dia de cada vez. Eu dormia querendo chegar logo à manhã pra abrir outra janelinha. Só agora vejo que aquele brinquedo, e não apenas a Serra de Furnas, como já contei, me inspirou a filosofia que só viria a conhecer duas décadas depois.

Mas isso remexe tanta coisa. Ainda hoje falava com Júlia e Lucas do pomar da minha casa da infância. Pronto! Agora entendi: o texto de T. jogou-me ao lençol freático das memórias de criança e se misturou com um sentimento doce e perfumado – a prosa com as crianças se deu enquanto descascávamos mexerica. Devidamente lavada para evitar contaminação com vírus.

T. Sempre tão profundo em suas reflexões e hábil com as palavras. Parece um domador de leões. Que bom ter retomado contato com ele depois de tempos. E saber que está lutando de seu lado contra a rasura – no sentido gráfico e arquitetônico – do pensamento corrente que transita entre o estupefato com o novo e a saudade do velho. Sem saber que existir é estar entre ambos – envelhecer deveria ser grafado como “desnovecer”. Normal, pós-normal, novo normal. O que seremos pós-pandemia? O que éramos desde sempre. Um planetinha no meio do nada, milagrosamente poupado de asteroides há muito tempo, sem nenhuma garantia de que amanhã existirá, pura fé que temos na continuidade entre as coisas, como nos ensinou David, o inglês.

Fora isso, estamos por aí, driblando qual Garrincha a enxadrista de Ingmar Bergman.

Passados os intervalos de angústia e medo, sobrevém a verdade consoladora: somos! O verbo está no plural. Isolados, mas não sós. Não é qualquer substância química de alteração dos humores ou livro sagrado que me convence disso: é a convicção mais funda possível de que todos os que foram ou são importantes na minha vida eu nunca os senti tão achegados a mim. É porque, em verdade, só sou porque eles são. A pandemia é para mim, antes de tudo, um desnudamento.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 11/06/2020
Código do texto: T6974149
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