Era um dos sábados de janeiro de 1992, final de tarde chuvosa, e nós tínhamos acabado de nos mudar para um apartamento maior, bem maior. Tinha três quartos, dois banheiros, uma sala enorme, com dois ambientes, uma cozinha que, ao nos dar a entender que permitia duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, nos fez rir de alegria; e tinha uma área de serviço que dava até gosto de ver, com espaço e pré-instalação para uma lavadora de roupas e um varal deixado pelo inquilino anterior. Estávamos tão animados com a mudança que, por vários minutos, andamos pela casa, às vezes cada um pra um lado, às vezes juntos, só para usufruir da satisfação causada pelo tamanho do lugar. O beliche foi transformado em duas partes separadas, e cada uma foi para um quarto, depois de decidirmos em qual dormiria quem. Olhando da porta do meu quarto, a minha cama, sob a fraca luz que entrava pela janela semi-aberta, simplesmente parecia uma alma solitária. Os dois sofás de dois lugares, mais a estreita estante (cambaleante por causa da velhice), mais a TV em preto-e-branco, pareceram ocupar um dos ambientes da sala sem muito deixar a desejar. A geladeira e o fogão chegaram timidamente à cozinha, cada um pra um lado, como se tivessem sido obrigados à ruptura de um relacionamento de anos. Mas tudo bem. Lá estávamos todos nós: meu amigo, eu e a despretensiosa mobília. No dia seguinte, acordei por volta das 10h30. O quarto estava totalmente iluminado pela luz do sol, coisa que jamais acontecia lá na quitinete do centro, onde a cortina que contribuía para dois únicos ambientes não a deixava entrar. A casa estava silenciosa, mas os ruídos do preguiçoso trânsito de domingo na avenida chegavam à beira da janela. Levantei-me, desamarrotei manualmente uma camiseta que estava em uma das sacolas adquiridas para a mudança, fui ao banheiro e, quando passei em frente à sala para ir à cozinha, vi meu amigo já desfrutando da casa, esparramado em um dos sofás, lendo o jornal. Ele já tinha saído para dar uma espiada na vizinhança, percebi. — Tem uma padaria bem ao lado da portaria – ele me falou. — Vamos lá pra você conhecer? Tá a fim de tomar um café? Dona Noêmia era a dona, que também era a balconista e a responsável pelo caixa. Espontânea, barulhenta, receptiva, sorridente. Com o tempo, a gente passou a dar um pulo lá todos os dias, e percebemos que ela se refreava na frente do marido sisudo, que passava de vez em quando, decerto para dar uma olhada no andamento das coisas. Um dia, ela pediu, depois de ter nos contado sobre a difícil juventude lá em seu estado natal, que lhe comprássemos, da própria padaria, um refrigerante; um guaraná, de preferência. Eu ri, meu amigo riu, e pensamos que estava apenas brincando. Mas não estava. Ela tomou o líquido com tanto prazer que seus olhos ameaçaram lacrimejar. Houve outras poucas vezes em que ela nos pediu um docinho da vitrine, “Aquele ali, ó”, ou um café com leite, ou, de novo, outro guaraná. Meu amigo mergulhou numa reflexão, pressupondo que isso se dava porque lhe fazia bem relembrar os tempos de solteira, junto de pai e mãe, que sentia saudade das antigas sensações da pouca fartura, e gostava de visitá-las ao sabor de um copo de Tubaína, ou de um pão doce, e que a graça de já ter praticamente tudo, a julgar pelas roupas que o filho usava, pelos modelos de dois ou três carros com que o marido se exibia ao chegar, quase já nem mais existia. Já eu fui mais longe. Para mim, nada, nem mesmo uma bala, saía daquela padaria sem uma explicação contábil. O homem com cara séria devia ser é muito tacanho, mão de vaca, isso sim. Para mim, apesar da padaria, dos carros, do “apartamento enorme em que morava”, conforme ela enfaticamente nos contou várias vezes, e apesar de um outro comércio que ela vez ou outra trazia à conversa, Dona Noêmia não tinha ainda conseguido se livrar de algumas ou das privações, e que possivelmente jamais conseguiria. Não sei.