Tipos humanos: O Mecanógrafo
O inverno parecia se adiantar nos últimos dias do outono paulistano. Levantei-me cedo e, com um entusiasmo com aparência de coragem, saí para o ponto de ônibus, cortando o vento gélido na manhã morta. Era uma segunda-feira. Estava feliz, com um sorriso bobo no rosto, pois eu iria visitar um amigo querido. No transcurso que fiz a pé de casa até o ponto de ônibus todas as cinco pessoas que, assim como eu, saíram de casa naquela manhã gelada, puderam ver meu semblante de contentamento. Mas não pude ver os seus, porque estavam escondidos sob máscaras. Brancas ou azuis, frouxas ou firmes, aquelas máscaras escondiam as pessoas dos meus olhos e dos olhos das outras pessoas também. Se estavam sorrindo ou fazendo careta para o frio, se eram bonitas ou usavam batom, se tinham bigode ou se as maçãs do rosto tinham marcas de espinhas, não sei, não vi. Eu também me escondi, mas só porque o motorista do ônibus disse que se eu não o fizesse, não subiria no coletivo. O ônibus demorara bastante. "Estão de greve?" perguntou um homem velho enquanto tirava a sua máscara afastando-se para fumar. Respondi com um sorriso sem graça que desapareceu quando tirei da carteira o bilhete da passagem.
Não havia uma viva alma naquele ônibus que não estivesse cobrindo o rosto. Ao meu lado, um homem de meia-idade usava uma com o brasão de um conhecido time de futebol, estampado no tecido que cobria o espaço anatômico entre o queixo e a protuberância óssea do nariz. Ridículo. Ele estava cochilando. No assento imediatamente à frente do sujeito, havia uma mulher que usava uma calça de moletom justa e, na parte superior, um agasalho que, embora a deixasse protegida do frio desde a tórax até o pescoço, a desguarnecia na cintura, que ficava inteiramente à mostra. No umbigo da moça, um brilhante reluzia com os raios nascentes do sol. Sua máscara era, de longe, a mais estranha: um tecido rosa envernizado com pintas vermelhas estava rendado nas extremidades com adereços de um tecido branco. Parecia uma calcinha. Seus olhos, vivos pelo milagre dos cílios artificialmente longos, despertavam a curiosidade de qualquer um.
Em outro assento próximo à janela, uma mulher tinha no meio da cara uma máscara rude, semelhante àquelas utilizadas pelos profissionais que pegam no pesado nas construções ou ganham a vida cortando a grama de gente rica com aquela máquina grande e barulhenta. Era azul com dois pontos brancos equidistantes, pareciam ser feitos de plástico e tive a impressão de que eram, na verdade, pequenas aberturas através das quais a pobre mulher pudesse respirar. Eu a encarei por um longo tempo, tentando decifrar esse seu mistério. Ela, assim que percebeu que estava sendo observada por mim, deformou as sobrancelhas num movimento facial grotesco que me fez desejar jamais descobrir o que se escondia sob aquela máscara. A moça do piercing no umbigo não se comportou assim, quando também descobriu que eu a observava, tratou logo de disfarçar: ficou a olhar para a paisagem que se revelava através da minha janela de modo que os seus olhos, embora não voltados diretamente para mim, pudessem dar à misteriosa dama do umbigo reluzente, uma percepção minimamente nítida do seu observador. Lamentei durante toda a viagem não poder ver o seu rosto.
A máscara mais estranha naquele ônibus era justamente a do condutor: preta e robusta, realçava o seu mau humor de estar ali, dirigindo numa manhã gelada de segunda-feira e ouvindo impropérios dos passageiros que, de obstinados, foram impedidos de subir porque não estavam usando a máscara. Ossos do ofício. O ônibus chegou à estação final, onde os passageiros puderam fazer baldeação para os trens e continuar seguindo do subúrbio para o centro. No hall feioso da estação da CPTM dei de encontro com o óbvio: ninguém podia entrar com o rosto à vista. Incontáveis placas estavam afixadas pelas paredes, colunas e escadarias do desgracioso prédio moderno, de maneira que ninguém, salvo se fosse analfabeto, pudesse dizer que não lera o aviso. Na verdade, se o sujeito não soubesse ler, entenderia por força de intuição as novas regras de comportamento nas dependências da estação, tudo o que teria que fazer era observar. Ademais, guardas sisudos vigiavam as entradas, as escadarias, as plataformas e qualquer local propício para o ajuntamento de pessoas. Tudo estava mudado, e não havia nada que um rebelde pudesse fazer. "Conforme-se," dizia eu em pensamento enquanto caminhava para um canto afastado à espera do trem que vinha do Oeste e, durante quarenta minutos, me transportaria para o sentido oposto.
No seu itinerário através dos espaços etéreos, o sol já avançara um pouco mais desde que apanhei o ônibus. Agora, eu observava sua ascensão através das janelas herméticas dos novos trens da CPTM. Diferentemente da atmosfera exterior que, com o avançar da manhã, ia ficando cada vez mais quente e agradável, o ar dentro do trem era mantido numa desagradável baixa temperatura. As novidades sob aquele sol não eram boas-novas. As pessoas que outrora riam, conversavam e sujavam os lábios e as mãos comendo amendoim e chocolate dos camelôs, agora eram obrigadas a permanecer num estado de introspecção involuntário que, para a maioria, não era um convite à reflexão ou ao conhecimento interior: era uma prisão, uma punição, uma tortura. Como a síntese da beleza está no rosto, não era mais possível verificar se uma moça que passava era bonita somente olhando para as silhuetas do seu corpo dentro das calças jeans exageradamente apertadas. As belezas ambulantes eram incompletas. A única beleza permanente era a alvorada através das janelas.
Para me livrar de ser espremido pela multidão, viajei no último vagão, de onde desci, na estação da Barra Funda, para ver a barafunda dos mascarados comprimindo-se uns aos outros na luta para abandonar o trem apinhado de gente. Era uma multidão de olhos com cílios postiços, maquiagens borradas, óculos escuros, lentes de contato, monocelhas e sobrancelhas que se dirigiam para a Sé. Abaixo dos olhos, as máscaras arfavam, no compasso acelerado da respiração. Eu era um deles, se não fosse, se me rebelasse, se estivesse sem máscara, eu não estaria lá. Agora, transportado do trem para o metrô, onde não havia sol na janela, vi que as pessoas pareciam mais distantes. Cochilavam e tinham os ouvidos ocupados com fones, e as que, assim como eu, se mantinham alertas, desviavam os olhos de tudo que fosse humano.
Enfim, desembarquei na estação Sé do metrô, onde me encontraria com meu querido amigo. Como se as saídas da estação que dão para a catedral estivessem interditadas, me dirigi para a saída oposta. Meu destino era a rua do Carmo. Ao emergir do subterrâneo do metrô, foi como se eu tivesse entrado num mundo novo, estranhável mundo novo: uma horda de mendigos e drogados ocupava grande parte da praça, desde a saída interditada da estação até as laterais da catedral. Esta cena, vista de uma certa distância, poderia ser confundida com as antigas pinturas que retratam as feiras medievais celebradas nos entornos de Notre Dame ou de Évora, se os personagens da cena, ao invés de moribundos, fossem comerciantes e aldeões em dia de celebração. Ainda na praça, caminhei até um policial para pedir informações sobre a direção da rua do Carmo, porque, como eu estava habituado a visitar esse meu amigo saindo da estação através dos portões interditados, do outro lado da praça, fiquei confuso sobre como chegaria no meu destino através de um caminho diferente.
"Rua do Carmo?" disse o policial. "É o seguinte, você segue por ali, atravessa aquela rua e dobra à direita, no sentido do Poupatempo." Agradeci com um aceno de cabeça e com um sorriso, mas, ao me afastar, percebi que, como no meu rosto só os meus olhos eram visíveis, ele não vira meu sorriso. Segui caminhando no sentido indicado e, enquanto caminhava, tomei consciência de um fato curioso: podia ver claramente os semblantes perdidos dos moribundos, porque eles não se escondiam sob máscaras. Assim, na saída da estação, o primeiro sentido afetado era o olfato, pois o lugar estava tomado por uma atmosfera pútedra que emanava dos dejetos dos mendigos e das suas roupas sujas, logo que se subia as escadas, contudo, o sentido da visão capturava o complemento do olfato e aquela realidade imunda tomava forma completa. Passando por entre eles, vendo o estado de miséria em que se encontravam, não pude deixar de alimentar uma centelha de revolta por aquele descaso. Quem os abandonou? Eu, eu os abandonei. Me recusei a dar esmolas e a comprar os seus amendoins, mesmo ouvindo o apelo sincero de que as moedinhas dos amendoins eram para o pão e o leite das crianças que ficaram enroladas sob cobertas imundas em algum canto escondido da praça. Ou, talvez, era para abastecer a algibeira do moletom imundo com mais entorpecentes e o copo frágil de plástico branco com mais aguardente.
A Catedral da Sé de São Paulo, o quinto maior templo gótico do mundo, estava com as portas fechadas. O Covid era a causa, ou a desculpa que as tão preocupadas autoridades encontraram para impedir que as pessoas frequentassem a missa, que ficassem reclusas em casa e, se ousassem sair, que usassem máscaras. Por isso a multidão no subterrâneo do metrô as usava, mas e os moribundos da superfície? Por que não as usavam? Porque, na verdade, ninguém se importava com eles; nem eu, nem a moça bonita do ônibus, nem o policial que permaneceria indiferente ao meu sorriso se o visse, nem o governador que, semanalmente, se apresentava de gravata na tevê e interpretava seus discursos recheados de preocupação com os necessitados, com os pobres, com os moribundos. Ninguém. Nem eles consigo. A degeneração é o nosso castigo por infligirmos o segundo mandamento. O progresso, com suas curvas ilógicas, é a materialização da nossa perdição. Somos feios e sujos e doentes e maus.
*
Não era o asco de ureia que preenchia o ar. Um perfume fraco de madeira velha e de lombadas de livros centenários restaurados permeava o novo ambiente: eu chegara, enfim, à oficina do mecanógrafo. "Sr. Oliveira!" disse eu. "Você está diferente da foto, rapaz," respondeu ele, sorrindo. A rua do Carmo fora, outrora, o centro nervoso de onde irradiava a oferta de produtos e serviços referentes à máquina de escrever. Desde os modelos mais variados até os serviços de reparo mais complexos podiam ser encontrados nos entornos da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte. Com o avanço rápido e impiedoso dos computadores, esses serviços, contudo, caíram no esquecimento, porque as novas tecnologias tornaram as máquinas obsoletas. Mas, para aqueles que viam ainda nas engrenagens das typewriters algo para além do mero pragmatismo ultrapassado, profissionais remanescentes se orgulhavam de poder atendê-los. Eram os mecanógrafos. Na rua do Carmo e nas suas adjacências, dois ou três estabelecimentos resistiam. E um em especial ostentava a preferência dos velhos que se negavam a aprender a usar um computador e dos jovens entusiastas da máquina de escrever.
O primeiro nome do Sr. Oliveira era Ronaldo. Mas engana-se quem achar que o homem, porque era um autêntico representante de uma profissão antiga e quase extinta, gostava de uma boa formalidade. Não. Eu o chamava assim por respeito e admiração e também porque sua oficina levava o nome de Oliveira Typewriter. Era um homem de estatura mediana, com uma saliência abdominal e que falava com sotaque do Sul. Nasceu nos campos de Piratininga, mas fora criado na municipalidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Muito jovem, porém, abandonou a vida pacata no Sul para regressar à sua terra natal. De volta a São Paulo, chocou-se com a dinâmica da grande metrópole. "Fiquei impressionado com aqueles ônibus elétricos!" contou. Fora empregado no setor de lavanderias, onde, segundo disse, mostrou-se prestativo e perspicaz. O homem se orgulhava da instrução que recebera no ensino fundamental e a exibia com orgulho e confiança. De fora, quem o via assim, a falar um português impecável enquanto expunha a história das máquinas de escrever, desde o avanço da forma das engrenagens, dos detalhes e peculiaridades dos modelos até às implicações culturais, econômicas e políticas que essa maravilha mecânica representou para os homens que nasceram no século XIX e viveram no século XX, não diria que ele detinha apenas o curso primário.
Para o indivíduo que descobriu que pode saber por saber, que pode alcançar, mediante o esforço próprio, a compreensão de aspectos da realidade que o interessam verdadeiramente, sem que ninguém o obrigue a fazê-lo, os seus limites são determinados pelas fronteiras mesmas da sua vontade. Ao conversar com o homem, notei que seus conhecimentos ultrapassavam em muito tudo o que aprendera na escola e que, visto o seu poder de síntese, nem mesmo os mancebos universitários se equiparavam a ele. As injustiças sofridas por Nikola Tesla por causa da inveja de Alva Edison e dos interesses obscuros da CIA que, no fim da vida, o roubara; a disputatio entre Alberto Dumont e os irmãos Wright; o reinado do cruel Ramsés, irmão adotivo de Moisés; as civilizações Maia, Inca e Asteca. Sua peculiaridade era uma força de interesse admirável que o levava e empreender pesquisas com método e o conduzia a um entendimento profundo dos seus objetos de interesse.
O mecanógrafo não era um acadêmico formal, mas ostentava um vigor intelectivo de fazer sombra em muitos aspirantes. Seu método era simples: ler e estudar tudo o que caísse em suas mãos sobre quaisquer temas que lhe parecessem interessantes. Contudo, o homem não conseguiu dominar um método de análise da realidade que se afastasse dos velhos clichês marxistas. Suas opiniões sobre história e religião, por exemplo, não conseguiam se desvencilhar do prisma da disputa pelo poder; sua compreensão sobre a consolidação das grandes civilizações e das grandes conquistas da tecnologia, por exemplo, estavam na clave da luta de classes. "Tudo é pelo poder," dizia ele. Isso porque, provavelmente, os seus livros dos anos 60 e 70 publicados no Brasil estavam cheios de ideias que explicavam as coisas através da clave do conflito permanente. Mas, isso de modo algum é um demérito, pois o Sr. Oliveira tem um senso moral que não permite qualificá-lo como marxista ou como qualquer outra coisa que não seja um indivíduo com interesse real por aquilo que prende sua atenção.
Seu pai, Ruy de Oliveira, fora escritor numa época em que a exigência para exercer o ofício da escrita, seja em jornais, periódicos, rádio ou teatro, era o domínio da língua e, claro, o conhecimento da sua literatura. Esta época reconhecia que o conhecimento conquistado por um homem era resultado do seu esforço, do seu mais sincero interesse. Hoje, se um sujeito quiser ser escritor com o aval do establishment, deve submeter sua inteligência não à cosmovisão da alta cultura, dos ideais da civilização, mas à perspectiva sem longo alcance daqueles que assinam o seu diploma. Numa conversa franca, o Sr. Oliveira contou como o seu pai transitara por entre os artistas do rádio, do teatro e da tevê com a maior naturalidade, desfrutando da humildade (entendida aqui fora da sua acepção vulgar, mas no sentido de senso do real) dos artistas, atores e escritores que estavam na ativa nos idos de 1950. A época de estreia da televisão no Brasil fora também o auge, que se estendeu até o início da década de 1980, de um tipo de gente superior: as gentes educadas. "Meu pai conheceu muita gente importante na época, muitos artistas do rádio. Mas eles não eram como esses supostos artistas que temos hoje em dia, não, eles eram diferentes; eram acessíveis, educados, cordiais. Não tinham o nariz empinado. Se, por exemplo, nos bastidores dos ensaios de uma radionovela, faltasse alguém, qualquer um ali que levasse o mínimo jeito para a coisa era chamado para substituir o ator ausente."
O pai do mecanógrafo fora um dos fundadores do Teatro Novos Comediantes, em São Paulo e ingressou no rádio através de suas amigas Carmem Silva e Norah Fontes. Ruy de Oliveira poderia ser objeto de uma outra crônica, mais profunda e densa. Ele conviveu com muitos artistas de sua época. Seu filho me contou que, certa vez, enquanto se deslocava através da cidade de São Paulo para levar um cheque referente ao cachê de Hebe Camargo, sua amiga, encontrou, na entrada do hotel onde a "dama da televisão" estava hospedada, Edith Piaf cercada de jornalistas e fotógrafos. Perguntou à Hebe: "Quem é aquela baixinha?". Sua interlocutora disse, exclamando: "Ruy, você não sabe?! É Edith Piaf!". "Aquele foi o maior mico da vida do meu pai," disse Ronaldo. De todos os artistas que conheceu, um em especial me chamou a atenção: Geny Prado, que contracenara com Amácio Mazzaropi em muitos de seus filmes. A madrasta do Sr. Oliveira fora Odette Liz, novelista e atriz de sucesso e ganhadora do troféu Roquette Pinto.
Alguns homens têm a sorte de participar de muitos acontecimentos, outros, porém, sorriem à sorte de poder ouvi-los narrar os tais acontecimentos. O que, sob a tépida e erótica vista da musa da literatura, é a mesma coisa, pois, através da suspensão da descrença, participa-se das histórias ouvidas. Ronaldo Oliveira apresentou-me sua oficina e o seu pequeno museu. E, para cada objeto ali conservado com zelo, o homem contava uma história. Seu museu particular mantém peças ecléticas, objetos curiosos que, se antes foram versáteis para o uso pragmático, agora eram versáteis para a imaginação. Bicos de pena, algumas moedas dos tempos de Getúlio, a vassourinha de Jânio Quadros (ainda precisamos dela!), condecorações de concursos de datilografia, máquinas fotográficas, binóculos de bolso para o cidadão levar para o teatro e ver, maravilhado, as silhuetas das damas sob os bordados dos decotes e, claro, máquinas de escrever, muitas delas.
Desde os primeiros protótipos vendidos ao público a preço de um cavalo nos idos de 1873, até as psicodélicas e esquisitas máquinas de plástico dos anos de 1980. Estão todas lá, perfiladas sobre prateleiras e móveis adjacentes às paredes, num grande móvel no centro da sala e, no chão, sob as mesas. Centenas de máquinas de escrever testemunham a grandiosidade do engenho humano. E o Ronaldo, com sua aparência de meia-idade e com sua saliência abdominal, que de tudo entende, passeia por entre elas como um pastor entre as suas ovelhinhas queridas, chamando-as todas pelo nome. No antigo prédio onde ele mantém sua oficina, há uma vizinha adorável, dona Jaqueline, que diariamente serve ao mecanógrafo seu almoço, pontualmente quinze minutos antes das três da tarde. A amável Jaqueline me serviu um caprichoso misto quente acompanhado de uma generosa caneca de café. Não sei se tal regalia é ofertada a todos os clientes que visitam a oficina, não perguntei, mas desconfio de que só os muito interessados nas conversas e nos objetos curiosos têm o privilégio da bondade da vizinha do mecanógrafo.
De saída, ganhei do Ronaldo um prego enferrujado. Sua oficina, na rua do Carmo, fica ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, edificada no início do século XIX. Fora em seu singelo campanário que primeiro badalou os sinos de 7 de setembro de 1822. O templo estava em reforma e o Ronaldo, observando diariamente o movimento dos trabalhadores, se deixava intrigar com a quantidade de material, madeira sobretudo, descartado como refugo. Um dia, porém, perguntou ao engenheiro responsável pela reforma, "um pentelho," como ele disse, se poderia ficar com alguns pregos presos às vigas de madeira de lei do telhado que estavam sendo substituídas. "Não, porque isso aí é patrimônio," fora a resposta do engenheiro. "Mas vocês vão jogar fora!" Replicou o Ronaldo, já encolerizado. Diante da má vontade do engenheiro pentelho, Ronaldo retirou-se. No outro dia, entretanto, ao caminhar para o trabalho, passou pela igreja e viu, embasbacado, as vigas bicentenárias jogadas numa enorme caçamba próximo ao templo católico. Foi até lá e pegou alguns pregos, pedaços enferrujados da História. Quando viu o engenheiro contratado pela prefeitura, gritou: "Olha aqui o patrimônio que vocês jogaram no lixo!" Isso ele me contou pouco antes que eu saísse, acrescentando: "Fique com esse," e me entregou um enorme prego retorcido e enferrujado, "alguém o martelou lá no telhado da igreja antes dos tempos em que Dom Pedro dava uns amassos na Domitila."
Fiz o itinerário de volta para casa, no longínquo subúrbio, pensando em como os mistérios da condição humana se revelam nas coisas mais simples, nos detalhes mais singelos do cotidiano. Olhar com atenção as pessoas nas ruas, no metrô, nas praças, nas distantes janelas dos apartamentos ou nas trepidantes janelas dos ônibus, na saída das missas ou nos portões dos cemitérios... Se a vida é mesmo a arte do encontro então que ele seja memorável, porque os desencontros pela vida são as recordações perdidas.