HÁ MUITO TEMPO
HÁ MUITO TEMPO
Há muito tempo, os pés pisavam a terra nua, a cabeça andava aos ventos, o banho de chuva lavava a alma, correr atrás de uma bola era um prazer inenarrável, olhar a pipa dançando no céu era voar junto, chupar uma goiaba ou manga no pé era muito doce, sentar na roda dos moleques e contar verdadeiras mentiras era deleite, escapar de levar uma coça da turma da outra rua era uma façanha, andar de bonde sem pagar uma aventura, afinal tudo parecia ventura.
O tempo passou, os pés não pisam mais o chão, a cabeça anda em ares de tragédia, o banho de chuva vira gripe, resfriado ou coisa mais grave, as bolas murcharam, a pipa não levanta voo, goiaba ou manga compra no supermercado e já não tem tanta doçura, as mentiras cresceram e viraram verdadeiras verdades, não apanha da turma da outra rua, apanha da turma que nunca viu, andar de ônibus sem pagar é uma chatice, a aventura virou a certeza que o que passou, valeu muito a pena, e as lembranças agora abstratas, teimam em vir à tona em expressiva concretude sonegada.