DONA GERTRUDES
04 de junho/2020.
Na tarde fria e chuvosa, atrás do balcão eu espio o asfalto molhado.
De quando em quando, alguém , agasalhado e empunhando um guarda chuva, ousa desafiar a tarde carrancuda.
Na monotonia da tarde vou catalogando em pensamentos algumas tardes em minha vida, com requintes desta que agora experimento .
Bolinhos de chuva, livros, qinquilharias, aconchegos...Vão aos poucos, desfilando na passarela de minhas lembranças.
Nenhuma , no entanto, capaz de satisfazer-me.
De repente, como num estalo,um doce retorno no tempo.
Então, como que visualizando uma foto desbotada...
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Vovó metera a faca na caixeta da mais recente marmelada de sua fabricação, cortando uma generosa fatia.
Embrulhou-a num pano de prato, colocou numa sacola de crochê, ordenando-me:
-Leve para a “Tuca” – era assim que denominava a amiga – e diga “àquela coisona” que estou sentindo sua falta aqui na minha cozinha.
Cavalgando um alazão imaginário eu ganhei a liberdade espaçosa dos campos que separavam a casa de Nha Tuca,da nossa casa.
Cheguei ao destino:
Água escorria translúcida procurando entre capim e cascalho o melhor jeito de descer a ladeira.
Imerso em poça d´agua purifiquei-me e lentamente, empurrei o portão de ripas.
Pisei os tijolos desencontrados e alecrins, ao redor da calçada , benzeram-me as canelas.
Chovia de manso,e alguns lampejos de sol ,intercalados, rabiscavam arco iris aqui e acolá.
Porta entreaberta...
Fui me achegando.O agradinho de vovó fazia-me um mensageiro.
Receberam-me na saleta,olhares discretos de alguns retratos pendurados na parede.
Silêncio de templos, pingos tamborilando no telhado...
Uma cortina, que ia e vinha ,arrastava franjas pelo assoalho de tábuas largas.
No vai e vem,amostras do quarto.
Cama com cabeceira alta, colcha de retalhos encobrindo colchão de palha,tapete de retalhos iguais à colcha.
Uma canastra com as partes metalizadas carcomidas pela ferrugem, mesinha de cabeceira, catecismo, fita do apostolado e um pequeno lampião a querosene.
Noutro compartimento, pequenas xícaras perfiladas num guarda comida azul.
Rosas perfeitas,príncipes e princesas estampadas ao longo da porcelana branca, delineada de fios dourados davam um toque sutil ao acabamento.
Na mesa encoberta com toalha xadrez, algumas dálias num vaso de vidro.
Um pequeno degrau e...
A cozinha de chão batido !
Era lá onde ela costumava ficar o tempo todo.
As chamas crispando no fogãozinho de barro, o chiado adulado da chaleira em princípio de fervura, o coador acoplado sobre o bule, delatando promessa de café fresquinho.
Uma porta esgueirando-se para o quintal.
Pêssegos amarelando as brumas da tarde.
Sumarentos !
[Os mais deliciosos que já provei]
Odores em contraste na tarde chuvosa.
Pêssegos no quintal.Inhaca de menino molhado preso à suspensório,sorvendo os encantamentos daquela casa.
Gatos enovelados em banco de madeira...
A idosa sentada em cadeira de palha, janela rústica abrindo-se para o quintal.
Os olhos miúdos projetando-se carinhosos ao tronco da figueira.
Ninhada de pintinhos recém nascidos abrindo caminho no chão molhado.
[ Tão amarelos quando os pêssegos do quintal]
Ela abre o diálogo:
_Lindos !...Tão amarelinhos,tão...tão...,profere a velhinha com voz trêmula.
[Fogem-lhe as palavras]
Desengonçado balançar de cabeça é minha concordância com aquele olhar da idosa, feito poesia presa ao retângulo de tábuas.
O feno umedecido cedendo,submisso, aos assédios do vento.
Frescos e orvalhados,despencam pêssegos sobre o macio tapete de capim.
Eu, ali !
Naquela cozinha de paredes escuras, chão batido e promessa de café.
Abotoando no peito - para sempre - aquela tarde de chuva mansa.
Com os bolsos abarrotados de frutas tomei o caminho de volta.
Por trás das pereiras, postada na janela, vovó era uma ternura à minha espera.
Que falta me faz nestes dias tão insípidos, aqueles aconchegos, aquela simplicidade.
Nesta tarde de chuva fria, de distanciamentos, eu busco por aquela janelinha que dava para o pé de figueira , para os olhares curiosos dos pintinhos, atentos ao novo mundo que os recebia, daquela ninhada ,tão amarelos quanto os pêssegos que caíam sobre o feno umedecido.