Médico de família
O Dr. Roque foi durante muitos anos o nosso médico de família.
Era um homem de meia idade, com um sorriso enigmático desenhado num rosto moreno, onde um bigode semi grisalho escondia uma boca de lábios grossos e rosados. Tinha um ar trigueiro e campestre, apesar do terno sempre engomado e das gravatas alinhadas e bem postas de cores fortes.
Contava-se que a sua devoção e apreço pela família vinha do tempo em que ainda era um jovem médico. O meu avô tê-lo-ia ajudado em começo de carreira ao recomendá-lo como médico, o que fez com que tivesse ficado extremamente grato e reconhecido por esse gesto tão valioso.
Assim, quando alguém em casa ficava doente, era só chamar o Dr. Roque que prontamente nos visitava depois do seu expediente.
E foi o que aconteceu naquela noite, já que o meu avô havia dias que apresentava um caroço no pescoço e perto da nuca que o incomodava muito, a ponto de não conseguir dormir. Se não fosse o seu aspecto uniforme e sem vermelhidão, redondo e em franco crescimento, até passaria por uma simples borbulha infectada. Por isso, resolveram chamar o médico da família.
Chegou no meio do nosso jantar, enquanto ainda nos encontrávamos todos à mesa. Como era de praxe, o Dr. Roque entrou sem cerimônias e cumprimentou-nos a todos efusivamente. - Não é servido de bacalhau, Dr? - Já jantou? Sabíamos que acabara de sair do seu consultório e por isso a minha avó insistiu para que comesse alguma coisa. - Aceito um café se não for incômodo! O meu avô sorriu com os olhos, enquanto limpava a sua bela posta que nadava num prato cheio de azeite.
O jantar ainda decorreu por um bom tempo e como o Dr. Roque tinha uma certa pressa de ir para casa, isso fez com que, sentado, começasse a mexer numa caixa de folha prateada, ao mesmo tempo em que ia saboreando o seu café. Eu era criança e instintivamente fiquei alerta para saber o que é que estava naquela caixa e o que é que ia acontecer. Ele abriu a tampa, onde estavam perfiladas sobre algodão duas enormes seringas de vidro e as suas respectivas agulhas.
As pessoas começaram a sair da mesa e eu e o meu avô permanecemos sentados, enquanto o Dr. Roque começou a levantar-se lentamente. Como era habitual, sorriu e pediu licença para apressar o procedimento. Eu fiquei gelado e incrédulo quando o vi pegar numa das seringas, já aparelhada e cheia de um líquido incolor e misterioso. Mediu o conteúdo, segurou o êmbolo, apontou para cima, apertou e fez esguichar o produto na direção do teto. O meu avô estava imóvel, sentado ainda à mesa na sua enorme cadeira de madeira arredondada que lhe dava um ar de falso rei. Apenas observava o médico, com um ar assustado e desconfiado. Nesse momento, o Dr. Roque aproximou-se rapidamente por trás. Pediu ao meu avô que inclinasse a cabeça para a frente e não se mexesse. A seringa, como que por encanto, tinha desaparecido. Em vez dela, o médico segurava numa das mãos uma pequena faca muito brilhante, com uma lâmina comprida de aspecto sinistro e letal. Eu estava petrificado e não ousara me mexer nem perguntar nada. Aquela cena, para mim, só poderia estar a acontecer numa sala de um consultório e nunca ali, onde nos encontrávamos relaxadamente sentados em uma mesa de jantar. Tentei ver o lado prático daquela situação, mas não consegui achar relação.
O Dr. Roque deve ter lido nos meus olhos de criança toda essa perplexidade. Isso fez com que sorrisse com um ar bonacheirão e soltasse a seguinte explicação:
- É um quisto sebáceo. Vamos descascá-lo como se fosse uma laranja!...