Fala, Carol
O telefone toca uma única vez. Para estes tempos, já é mais que o suficiente. Eu atendo, apesar de a etiqueta telefonesca recomendar que, em sinal de educação e civilidade, deve-se atender ligações após o terceiro toque. O que a etiqueta telefonesca não sabe é que essa recomendação caducou. Antes do advento do coronavírus, esse ritual fazia sentido. Geralmente sempre ocupadíssimos, faltava-nos tempo para atender o telefone no primeiro toque.
Hoje, com o aparecimento repentino do coronavírus, o ritual é outro. A moda é estar desocupado, embora isso não signifique necessariamente estar disponível, como bem sabem as moças do telemarketing. Hoje a real é outra; é ter muito tempo desocupado sem saber onde gastar. Veio o novo coronavírus e distribuiu tempo para o mundo todo ocupar-se, ainda que dentro de casa, —e então percebemos que nem só de trabalho vive o homem, senão estaríamos muitos bilhões de nós, para além do aceitável, loucos, pirados, tantãs. Estaríamos em um monólogo terrível.
Ainda bem que a ciência e o progresso existem e puderam fabricar a televisão, o facebook, o tik tok, o celular. "Menino, larga esse livro e vem ver a novela.", ordena uma mãe ao filho. O menino comemora: finalmente terminou o dever de casa, a aula home office, e aproxima-se a hora do recreio home office; dirige-se ao colo da mãe para encontrar-se com o celular materno, cujas utilidades vão além das utilitárias, servindo-lhe não raro como travesseiro, lençol, "necessaire", numa relação mui íntima — e assim na terra como no céu, para o bem e progresso das relações humanas/existenciais/comerciais/metafísicas, eis uma das modas que Carol, agente de telemarketing, conhece satisfatoriamente.
Tal qual a maioria das colegas de trabalho, dessa moda Carol entende. É esta a impressão que tenho: essas moças do telemarketing entendem de moda interpessoal, de vender ocupações e vesti-las de sentido. Penso: "Carol trabalha no telemarketing, logo..." Toda vez que, acidental ou propositadamente, recebo uma ligação de uma dessas moças do telemarketing, penso —como se pressupõe — estar diante de alguém alguém do sexo feminino, persuasiva, vestida em bom gosto, apesar da afetação exagerada ao falar.
Por que minha imaginação reluta em conceber homens trabalhando no telemarketing? Desconheço. É quase automática a figura que vem vestir meu cabide imaginário quando recebo uma ligação de alguém da área de telemarketing; é quase instantâneo: fabrico na mente uma mulher persuasiva, vestida em bom gosto, apesar da afetação ao falar. Não sei de onde saiu essa imagem do telemarketing feito apenas por mulheres requintadas, persuasivas, vestidas em ''bom gosto", desnaturalizadas na fala. Quem sabe tenha advindo do próprio telemarketing, às vezes penso. Venderam-me esse simulacro e não consigo devolvê-lo a seu lugar de origem. Assim fica difícil dizer não a persuasiva Carol.
É uma sexta-feira, às 13 horas, o almoço servindo-se atrasado, mas não faz mal, agora, mais do que antes, esse atraso também é moda; o telefone toca —está no bolso, como manda a regra do momento, ocupando o lugar da carteira — um único toque é suficiente para ser notado. Penso comigo: "Não estou almoçando nem ocupado, dormindo também não. Por que esperar o terceiro toque, se posso atender no primeiro?" E assim se fez, para a desabonação da etiqueta telefonesca de outrora, cujo antes nunca viu depois.
O DDD é de São Paulo. "Será do presídio?", desconfio ao mesmo tempo em que atendo. Se fosse antes da chegada do coronavírus, eu estaria ocupadíssimo, depois do horário de almoço, tentando cochilar. Mas, com o aparecimento do coronavírus, essa rotina mudou: o home office veio e bagunçou tudo. O horário do almoço já não tem horário, pode ser transferido, sem nenhum pesar, para a hora da janta; os agora poucos afazeres diurnos podem ocupar toda a noite noturna; os cochilos aceitam sem protestos cochilarem nos intervalos. Nesse ninho bagunçado a que convencionei chamar de rotina, tenho a falsa liberdade de dispor de tempo e de não está trabalhando em casa. Estou quase acreditando nisso, para a alegria de Carol.
— Boa tarde!
— Da parte de quem, respondo.
— Aqui é das Cosméticos Empreendedorismos Ilimitados. Sou a Carol. Falo com o senhor Damião?
— Fala apenas com Damião. O "senhor" está ausente.
— Ok. Damião, está esclarecendo. Damião, estou ligando porque você está sendo sorteado para ser um de nossos primeiros clientes a está recebendo, inteiramente grátis, um dos nossos mais novos lançamentos que estará sendo comercializado em breve. Trata-se de uma revolucionária pomada para calos.
— Revolucionária? Interessante... Fale-me mais a respeito.
— Nossa pomada estará trabalhando e hidratando a pele seca e áspera da região calosa...
— Oh! Uma pomada operária?!
— Sim... E estará sendo entregue a você Inteiramente grátis... Bastando apenas a você as despesas de Correio e...
— Mas, Carol, você falou grátis...
— Sim, a pomada, mas o frete e a assinatura...
— Assinatura?
— A assinatura de nossa revista "Calos&Cia", a que você, ao aceitar nosso brinde, estará assinando por R$ 200,00, valor simbólico.
— Mas, Carol, é pomada para calos ou brinde?
— É conjugado.
— Conjugado, Carol? Não consigo conjugar brinde com valor simbólico...
— Entendo. Por isso, estaremos isentando os dois primeiros meses de sua assinatura anual de nossa revista. Topa?
— Mas, Carol, a pomada operária não estará ficando ofendida com essa proposta?
— ...
— Alô, Carol! Fala, Carol. Fala, que eu te auxílio a me convencer.