MÃE, ESTE É O TEXTO QUE EU NÃO CONSEGUI TERMINAR PARA O SEU DIA

Projeto do livro - antepenúltimo capítulo. falta pouco

MÃE, ESTE É O TEXTO QUE EU NÃO CONSEGUI TERMINAR PARA O SEU DIA

Se eu pudesse mandar um texto para a senhora (não posso mais), mãe, ele teria o seguinte conteúdo:

“Mãe, eu imaginei fazer um belo, lindo texto para te homenagear. Bem joia. Tinha até data marcada para terminá-lo: O Dia das Mães. Seria bonito, lindo, poético, terno, mesmo emocionante, para este dia tão apropriado. Queria eu publicá-lo debaixo de muita emoção, de muito amor. Não consegui, mãe. Atrasei o término dele. Comecei, me esforcei, me apressei, mas... tive que, à força, compreender que não se escreve sobre tão grande amor, tão abençoado amor, em um tão pouco de tempo. Descobri que cada linha, cada ponto, cada vírgula, cada palavra conteria um caudal de vida grande demais para caber em apenas uma frase ou oração: seja coordenada, seja subordinada. A cada linha, senti uma enorme emoção, e percebi que a cada palavra escrita, eu teria, por obrigação, que embebê-la em um suspiro, ponteá-la com uma saudade. Poderia esboçar lampejos, nuances, até um sentimento ocasional, mas desde que não me abstivesse de uma lágrima, de uma reverência à sua veneranda memória. No mínimo, uma lágrima. Descobri que as letras não conseguem se articular coerentemente para expressar com perfeição alguns sentimentos. Principalmente os de um filho que recentemente perdeu “su madre”, “su madrecita”. Minha mãe... como...? Como eu vou conseguir expressar o que eu senti, à época em que nossas vidas foram entrelaçadas pela tua bondade, pela tua dedicação incondicional aos filhos? Nunca fui aquele filho que a senhora mereceu, muito imperfeito. Mas... lembro nitidamente. Eu já era um homem. Já tinha meus filhos. A senhora humildemente chegava à minha casa. Praticastes instantes atos de misericórdia – que o tempo se encarregou de dimensionar a atos sagrados que iluminaram alguma eventual quadra escura que a vida nos impõe passar. (Mãe, como vou pôr na minha pobre narrativa todo o bem que a senhora me fez?) Lembra quando eu ganhava pouco (acho que não ganho muito até hoje, kkk), e a senhora chegava à minha casa, com um cesto de frutas, cuidadosamente preparada: algumas laranjas (nunca faltavam – bom para gripe), bananas (para o coração), um conselho, as verduras? (“Cuida da saúde, menino”). Alguns litros de leite, para o Júnior, Karen, André. Um queijinho, mãe, branco, olha o colesterol – rsrsr). A senhora nunca se esqueceu nem de mim, nem de seus netos, da sua nora, que te deu tanto apoio na hora da enfermidade – a Tânia. Na minha dura luta pela sobrevivência, a senhora nunca me esqueceu, nunca me abandonou. O bolo de milho – a senhora sabia que era o meu predileto. Sua luta pelos seus filhos é um capítulo de heroísmo, de bravura, de coragem. Os tempos difíceis. Os tempos difíceis, adoçados, amenizados, pela figura meiga a quem um dia tive o privilégio de chamar por este doce nome: mãe – dulcíssimo.

Cianorte – 1963.

Educandário Nossa Senhora do Rosário. Na manhã nublada, coisa rara em nossa cidade, as vozes infantis subiam ao ar, inocentes. Eu me lembro, eu me lembro, de que estudava ainda no colégio das irmãs. Cantávamos. A música saía alegre, até certo ponto gritada, nos inconfundíveis tons da infância plena. Na semana antes do dia das mães, entoávamos canções, antecedendo o entrar na sala de aula. O pátio simples era nossa concha acústica (sem concha). O Airton Banana, esperto, traquinas, movia a boca, abrindo-a e fechando-a. Sem emitir som. A freira bronqueava: “Airton, eu sei que você não está cantando”. Grande para a idade, bonachão, arteiro. Bochechas balofas e rosadas, o Airton começava a cantar. Agora, esticava o final das estrofes: “Rainnnhaaa do laaaarrr”. Lá vinha bronca de novo. Éramos petizes, nada mais. Mesmo assim, eu pressentia, ao entoar aquela canção tão simples, eu pressentia: “Um dia, eu ainda vou chorar ouvindo ou cantando esta música”. (Pressentia não, sabia). Algo de grande, de magnífico, de espiritual, embalava aquele doce nome que tínhamos a ventura de entoar. A música vinha mesclada de emoção, de ternura, de alegria, de nostalgia. Um nó na garganta, precoce, instintivo, adiantado. O pressentimento da magna perda que deslustra nossa existência desde os primórdios, desde os primeiros passos, ainda quando as primeiras lágrimas ensopam o lençol.

(Mamãe)

“Ela é a dona de tudo,

Ela é a rainha do lar.

Ela vale mais para mim,

Que o céu, que a terra, que o mar.

(Sabe o que é difícil pôr em uma simples folha de papel? Alanir, lembra minha irmã Karen, doente? Fragilizada. O câncer avançando. E a senhora na cozinha, fazendo sopa, atarefada (dor que traspassava a alma) para sua filhinha se alimentar – ela já não podia engolir comida sólida. De onde lhe vinha aquela força, mãe? Suas mãos calejadas de tanto bater bolo, lavar roupa, cozinhar para os filhos, escrever no quadro-negro, lançar notas no canhoto, assinar termo de suspensão quando a senhora era diretora no Colégio da Vila Fany, corrigir provas, estas suas mesmas mãos trabalhavam naquele que viria a ser um esforço não coroado de êxito. O Natal vinha vindo. E a filha ia indo. O Ano Novo chegou. Sem brilho, sem a luz natural dos seus raios sempre dourados. Curitiba nunca foi tão cinza, impessoal, fria. 19 de janeiro: a frase do pai no Hospital Erasto Gaertner: “Está consumado”. A “Kaká”, a “Vi”, a segunda filha sua não mais estava entre nós. Ficaram os três pequerruchos, filhos dela (a quem a senhora ia criar com a alma, com o coração...) e sua tenacidade, seu brilho pessoal, sua coragem indomável.

Ela é a palavra mais linda

Que um dia o poeta escreveu.

Ela é o tesouro que o pobre,

Das mãos do Senhor recebeu.

Mamãe, mamãe, mamãe,

Tu és a razão dos meus dias,

Tu és feita de amor e de esperança.

Ai, ai, ai, mamãe!

Eu cresci, o caminho perdi.

Volto a ti e me sinto criança.

(Alanir Turbay Braga: de onde lhe veio forças para criar os três filhos da Karen, seus três queridos netos? Ninguém teria tantas forças assim. A senhora as teve. Amandinha, Gui, Carlinhos. Foi seu segundo turno de mãe. Que devoção, que dedicação. Só foi vencida aos 87 anos. Não pela fadiga, pelo cansaço. Pelo fim da vida terrenal. Tudo tem um tempo determinado. Chegara a hora de descansar.

Mamãe, mamãe, mamãe,

Eu te lembro o chinelo na mão,

O avental todo sujo de ovo,

Se eu pudesse,

Eu queria, outra vez, mamãe,

Começar tudo, tudo de novo”.

Começar tudo, tudo de novo. Quem dera. Passou. Ficou a saudade imensa. Um mundo mais simples, mais puro. Cada gesto, cada olhar, cada ternura. Lembro nossa casa na rua Guararapes, 900. Cianorte. Ali, à frente, a casa da vó Alice: 1001. A “data vazia”. A rua que servia de campinho. O Adolfo saltando e tendo o pulo amortecido pela palha de arroz. O Clodoaldo brigando com a gurizada, defendendo a Karen, me defendendo (Kkkk). Brincadeiras sem fim: Joãozinho, Décio, Zezinho, Adolfo (o Fô), Altamir (Mi/ meu tio que tinha exatamente a mesma idade que eu, Kkk), Altair (Taco), Clodoaldo (Dinho), Karen (Vi), Maria (Lia), Cris (Tutti). A Edséa (Seinha), nossa prima importada de Marialva). Não vai voltar mais. A vida segue em frente. A broa de milho que a vó Alice fazia, com chá mate quentinho. Minha vó, em minha vida, foi um capítulo inteiro de acolhimento, carinho e ternura. A de Terra Boa também (Maria Paula Barbosa). O vô Albino, sempre elegante, de terno, no calor exagerado de Cianorte. Descendente de libanês – toda vez que nos encontrava, um beijo na testa. Olha o vigor do seu Albino: meu avô foi meu professor de Educação Física (usava agasalho e tênis, lógico, na aula – apito na boca, passos largos, firmes) no Colégio La Salle – e do Altamir (filho dele). Este, estudava comigo na mesma sala, era meu colega e ambos tínhamos aula de Português com a professora Alanir, que era irmã do meu tio, filha do meu professor de EF, minha mãe e nossa professora (de ambos, no caso).

Ah, se eu soubesse!!!! Que um dia, nós sairíamos para brincar e esta seria a última vez. Na minha mente, de repente assoma: a noite que antecedeu nossa mudança para Curitiba, cidade onde nossa vida mudaria tanto, completamente. Eu estava empolgado. Capital do Paraná. Cheios de expectativas, dormimos, as crianças, na sala da vó, no sofá. Esperando a tão fantástica mudança. Curitiba: Passeio Público, televisão, apartamento, elevadores, ruas asfaltadas, piscina, Colégio Bom Jesus, calçadas impecáveis, muitas luzes, lojas, cartazes – que portento: linda, linda.

Ao chegar à nova morada, não demorou muito, a saudade veio arrasadora: Tanque do Noboro, balanço no quintal, Rio Coruja, Rio Índio, Vidigal, Terra Boa, fazendas, sítios (leite tirado na hora, mexericas, mel, milho verde), amigos, amigas, tios, tias, primos, primas, criação de porcos do meu pai (arrozinho, costeleta frita e mandioca), galinha preparada pela vó Paula, cafezal em flor, pamonha, rios, matas verdes. Acabou. Cine Iguaçu. O sol. O aterro. O pontilhão. O time de que meu pai era presidente: C.A.F.É. (Cianorte Associação Física e Educativa). Matinês: Mazzaropi, Jerry Lewis, Zorro, Tarzan. Rádio Porta Voz de Cianorte. Meu Deus.

“Quando algum dia, à minha terra eu voltar, quero encontrar as mesmas coisas que deixei”. Não, Jeferson, nunca mais você voltará. E se voltasse (não voltará), nunca mais encontraria o que deixou. O tempo, este matreiro, é implacável. Fatos vão se transformando em lembranças. Lembranças viram memórias. Tudo se transforma em apenas saudade na marcha fria dos acontecimentos.

Porém, sempre haverá a esperança e a certeza – um dia esta pálida existência terrena, dotada de limites tão estritos e ferrenhos, não suportará a vocação para a vida que permeia nosso existir humano. Convergiremos todos para a luz eterna que não mais será interrompida pela nefanda defunção, pelo horrendo exício.

Tchau, mãe! “Um dia começará tudo, tudo de novo”.