O vento da desgraça

Mesmo de tão distante da minha terra natal, lá do alto do Namapire, senti o sopro devastador do vento da desgraça. Naquele momento vivi o maior pesadelo da vida. Foram dias de muita dor onde senti calafrio, desgosto da vida que acreditava já ter sido sentenciada e muita dor nos ossos. Assim como os meus conterrâneos e compatriotas, senti que era o fim, o mundo estava desabando sobre mim e minha família que estava lá noutra margem, no verde de Mandruzi e nos mangais de Chiveve, vivendo um tremendo caos chamado Idai.

O vento impiedoso não teve compaixão, destruiu, matou e sequestrou sonhos. Ele simplesmente cortou as minhas pernas e esfaqueou a minha alma. Já não podia viajar porque estradas e pontes estavam completamente destruídas e as vias de acesso bloqueadas. Não podia me comunicar com a família e com os amigos porque a linha telefónica estava totalmente interrompida. Passei horas e horas sofrendo e pensando na minha esposa, nas minhas filhas e no resto de familiares e amigos que estavam passando por momentos de terror. Sem contacto algum, temia que o pior tivesse acontecido, que quando a tempestade passasse não os encontrasse vivos. Com as mãos e os pés atados, assistia tudo pela televisão. Fiquei boquiaberto com os destroços causados pelo ciclone Idai, tudo estava destruído, as cidades do Dondo e da Beira estavam completamente desertas. Cidades lindas e prosperas que já não eram mais as mesmas.

Os bairros ficaram desestruturados, as ruas irreconhecíveis, o rio Púngue transbordou, as pessoas estavam transtornadas, as doenças tais como a malária e outras de origem hídrica estavam matando crianças e mulheres grávidas, havia falta de corrente eléctrica, os bancos, as lojas e as escolas fecharam, os hospitais estavam lotados sem medicamentos e a circulação dos meios de transporte nas vias públicas ficou condicionada. Tudo isso se parecia com cenas cinematográficas, era terrivelmente inacreditável.

Do alto do Namapire eu estava vivendo momentos angustiantes, ansioso por um telefonema da minha esposa dizendo “meu amor, estou bem e as suas filhas também”. A verdade é que o telefone não tocava e a angústia aumentava cada vez mais. Alguns anciãos de Mironga diziam que nunca tinham presenciado ou escutado algo parecido com Idai, interpretavam o fenómeno como uma grande revolta de Deus contra o seu povo, pois ele é pecaminoso, não obedece, nem cumpre com os seus mandamentos. Diziam ainda que o Senhor estava revoltado de tanta hipocrisia, tanta prostituição, tanta corrupção, tanta onda de criminalidade, tanto nepotismo, tanto adultério e tantos falsos profetas e governantes despreocupados com o bem-estar do seu povo que abundam neste mundo. Outros anciãos, muito longe de pensarem nas penalizações do Senhor contra o seu povo, por conta do seu pecado, diziam que o vento devastador foi originado por uma guerra de poderes mágicos entre poderosos feiticeiros da região centro do pais, que desencadearam um combate aceso de magia negra com vista a provarem-se uns aos outros quem era o melhor feiticeiro de toda a região.

Essas interpretações, em momento algum me consolavam e me faziam acalmar, pelo contrário, pioravam a minha angústia. Se foi o castigo de Deus ou a guerra entre feiticeiros que originaram o aparecimento do ciclone Idai não me cabia na minha soberania de pensamento, pois o que eu queria ouvir era a voz da minha esposa dizendo que ela e as minhas filhas estavam bem e que sentiam saudades minhas, assim como eu sentia profundamente.

Depois de uma semana de tanto desespero, tanta incerteza e tanta dor no peito, o meu coração transbordou de tanta felicidade. O telefone que parecia nunca mais tocar, tocou. Era a minha esposa ligando e dizendo tudo o que eu necessitava ouvir naquele momento. Apesar de a casa ter sido demolida parcialmente pelo vento, dos imóveis destruídos, dos ferimentos ligeiros que contraíram devido à uma chapa do telhado que tombou sobre os seus corpos desprotegidos e da falta de produtos alimentares, as mulheres da minha vida estavam com vida, bem de saúde, mas precisando do meu amparo.

O vento da desgraça pode ter destruído, casas, estradas, pontes, escolas, hospitais e muitas outras infra-estruturas, pode ter causado morte à muita gente, mas não matou a minha fé e esperança, de reencontrar a minha família e começar tudo de novo, nem a dos meus conterrâneos e compatriotas de recomeçarem a vida, de se reerguerem junto das suas famílias e de construírem esperançosamente um mundo novo e um futuro promissor.

Glossário

Mandruzi – Local onde se produz arroz e nome de um bairro da cidade do Dondo.

Mironga – Nome de um bairro localizado no distrito de Mandimba, província do Niassa.

Namapire – Nome de um monte localizado no distrito de Mandimba, província do Niassa.

Manuel Chionga
Enviado por Manuel Chionga em 05/06/2020
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