BARQUINHOS DE PAPE

Não sei – a isso devo confessar – que estranho fascínio a chuva exerce sobre mim. Olhei para o digital sobre a mesa. Em seu cristal líquido, inscrito estava: 13h30min! Lá fora, uma forte chuva caía copiosamente. A íngreme ladeira fazia a enxurrada descer célere, aos borbotões, pelo atro asfalto da rua. Colei o nariz à vidraça da janela e fiquei apreciando, estupefato, o espetáculo que a chuva a mim proporcionava, inebriando-me. Pelo vitral, vi pessoas correndo na tentativa de se protegerem sob as marquises.

 

Meu pensamento voou a mil, fazendo-me viajar em uma introspecção ao mais profundo recôncavo do meu íntimo. Perscrutei ao meu ego, peguei as Asas das Minhas Elucubrações e nelas embarquei numa viagem no Túnel do Tempo para voltar à minha infância de paupérrimo menino! E lá estavam elas: as minhas indeléveis e saudosas lembranças! Vi aquele jeitoso menino assentado no chão. Nas mãos, velhos jornais. Na cabeça, todavia, mil ideias fervilhavam. Fazer o mais belo e possante barquinho era uma delas. Queria vê-lo navegando nos bravios oceanos da minha tenra e pueril imaginação!

Cabrum! Crash! Assustado com o troante barulho, sacudi a cabeça. Os ribombares de um trovão trouxeram-me de volta à triste realidade da vida. Já não sou mais uma criança – refleti! Não posso mais brincar na chuva com meus barquinhos de papel – constatei! Prostro-me para confessar minhas decepções, minhas tristezas – lamentei!

Lá fora a chuva continuava. Afasto-me da janela deixando ali – como se fosse o seu vitral um Santo Sudário – a marca da face triste de um nostálgico pecador! E no graal das minhas elucubrações, tristemente, bebi o vinagre fermentado nos tonéis das decepções que a vida a mim reservou – dentre elas, o preconceito sofrido por não poder brincar na chuva com os meus barquinhos de papel!

Respiro fundo. Faço passear o meu olhar a minha volta. Vejo um velho jornal. E ele, naquele momento, era uma enorme atração para mim. O jornal..., a chuva e a enxurrada – Santo Deus! – eram tentações em demasia para um saudoso coração! Senti-me como o legendário Ulisses que, desejando ouvir o canto das sereias, ordenou aos seus marujos: - “Atem-me ao mastro do navio para que eu não venha a ser tentado ir ao encontro das devas dos mares e ser levado – como tantos outros – pelos seus maviosos cantares!”.

Não! Eu não sou Ulisses. Não eram sereias que me atraiam com os seus eloquentes hinos de amor – não eram! Era a chuva, era a enxurrada. Eram, enfim, meus devaneios – indeléveis e doces elucubrações! Que se danem os preconceituosos!.. – pensei!

Pego o jornal. Em minhas mãos, o velho jornal começava a tomar a tão sonhada e desejada forma. Em princípio pensei que não seria capaz. Havia, contudo, em mim, ainda um muito daquela criança que, naquele momento, tentava se libertar de preconceituosos conceitos impostos aos mais velhos. Algo estava acontecendo comigo – notei! Senti que não era mais um adulto. Se alguém me visse naquele instante, haveria de dizer – em alto e bom som: - “Caramba! Que criança habilidosa!” Uma dobrinha aqui; outra maior ali; mais uma acolá e, pronto: eis o meu Barquinho de Papel!

A chuva tornara as ruas desertas. Por não ser Ulisses, não havia cera em meus ouvidos. Era uma artimanha – ouso repetir – usada pelos marujos para não ouvirem o canto das sereias! Não me encontrava atado ao mastro de nenhum navio. Estava sim, acorrentado aos inúmeros preconceitos sociais. E os mesmos quiseram sofrear em mim o desejo de lançar o meu barquinho ao mar. Que dirão – temeroso pensei – os pseudos e preconceituosos moralistas ao verem “um marmanjão deste” brincando – feito criança na chuva – soltando na enxurrada o seu Barquinho de Papel?

Danem-se! Mil vezes, danem-se! Se não temo as sereias, porque temer as hienas de plantão? Assim pensando – e resoluto como Sansão – arrebentei os elos da corrente prisioneira, joguei por terra os “deuses da incompreensão” e destruí os pilares do templo dos preconceitos. Ato contínuo, abri o portão que dá acesso à rua e, desprovido de agasalhos especiais, saí! 
                    

Sob a proteção de uma marquise, dei ao meu barquinho os últimos ajustes – “retoques técnicos indispensáveis, e previstos – diga-se” – e o lancei ao mar. Vi-o galopando ondas bravias, aparentemente indomáveis. Vi-o sendo açoitado por fortíssimos vendavais, tornados e furacões. Vi grandes e imensuráveis procelas, tsunamis, serem por ele, o meu valente barquinho (Quem diria, hem?), derrotadas! Vi, com imensurável orgulho, o meu barquinho a tudo vencer. Eu e ele! Ele e eu! Naquele momento, éramos um bloco monolítico em uma guerra contra todos os paladinos dos maldosos conceitos e preconceitos sociais. Eu, a arrebentar os enferrujados elos dos preconceitos – que são tantos! Ele, valentemente, a vencer as tormentosas ondas dos mares bravios! Ambos - em titânica luta a vencermos bravamente os oceanos – antes, de lágrimas, agora, de glórias! -“Mãnhê”!... Olha que legal aquele barquinho de papel descendo na enxurrada!... ouço uma voz de criança, ao alto e à minha retaguarda!

Volvo a cabeça e olhar para o lado de onde ouvira a voz. O dono desta era um garotinho que, feliz, fascinado, batia palminhas e dava vivas e mais vivas ao meu indomável Barquinho de Papel. Como que por encanto, outras janelas se abriram para nelas assomarem novos rostinhos de alegres crianças a se delirarem com o feito épico do meu valente Barquinho. Novos risos, novos aplausos, novos e entusiasmados gritos de: - “Viva! Viva, viva, viva” para o meu valente Barquinho de Papel que seguia – forte, garboso, célere e impoluto – a sua altaneira rota como se numa passarela estivesse! 
                                                    

A chuva voltou a ser forte e intermitente. Os aplausos continuavam. Nos meus olhos, as lágrimas de emoção e felicidade brotavam, molhando-me a face com intensidade maior que as lágrimas vindas do céu sob a forma da chuva que, abundantemente, caía!

Voltei para casa. Corpo molhado, alma lavada – enfim! Já no chuveiro tomei uma ducha quente com o fito de prevenir-me de um possível resfriado. Agasalhando-me o melhor que pude, fui até à janela apreciar a chuva contínua, porém, com menos intensidade. Um largo sorriso fez-se desenhar em meu rosto. A rua já não se encontrava deserta. Da vidraça, pude ver dezenas de crianças – papais e vovôs, marmanjões como eu, – a soltarem pela enxurrada uma esquadra de BARQUINHOS DE PAPEL!
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Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 02/06/2020
Reeditado em 06/11/2023
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