Capítulo 2

Saio do banheiro revigorada, tenho a impressão de que demorei apenas alguns minutos ali dentro mas, a insistência de Ravi em me apressar durante meu banho me diz que estou errada. Vou em direção ao espelho encostado na parede do meu quarto, enxugo meus cabelos com a toalha macia que tenho nas mãos, preta, sempre amei conjuntos de banho dessa cor, desde toalhas de rosto a toucas para o cabelo. Paro em frente ao espelho e encaro meu próprio reflexo.

-Achei que tinha acabado... - sussurro para mim mesma. O sonho que me levou a acordar aos berros não desaparecia com o tempo. Sonhos comuns se esvaem da memória conforme nos distrairmos, conforme nos ocupamos mas, esse tipo de sonho é diferente.

Termino de secar meu cabelo, está bem cuidado e finalmente consegui deixá-lo crescer, já passa da minha cintura. A cor dos meus cabelos fez com que Ravi me chamasse de framboesa quando crianças, meu cabelo é preto como algumas dessas pequenas frutas que nascem ao redor da casa, como se eu fosse apenas o lado escuro de algo bom e doce.

Desço as escadas e me deparo com Ravi carrancudo, deve estar faminto para carregar um bico daquele tamanho. Paro á frente da escada e observo ao redor, vejo meu pai indo se sentar à mesa e o cumprimento com um sorriso, ele me responde com um aceno de cabeça, parece mais cansado a cada vez que o vejo.

Desde que mamãe morreu, ele se empenha em cuidar das terras e trabalhar, as vezes me esqueço que um dia ele brincou comigo e Ravi de espadas em frente a nossa casa.

Vou até a mesa na cozinha, uma mesa simples de madeira escura. Me sento e espero Ravi se juntar a nós. Ele se aproxima, apesar de agir normalmente, sei que está perdido em seus pensamentos, procurando uma forma de iniciar a conversa que está por vir. Me pergunto se meu pai já foi informado dos acontecimentos dessa manhã.

Ravi vai até a bancada e pega um prato grande que continha pães recheados. Após colocar sobre a mesa, ele pega uma tigela para cada um e as enche com sopa, em seguida se senta. Silêncio paira no ar.

-Vocês estão quietos hoje. -Comenta meu pai, sem tirar os olhos da sua tigela. -Brigaram? -Então ele não sabia do sonho.

-Só estamos com a fome maior que a vontade de contar histórias. -Respondeu Ravi, indiferente. -Tem alguma que queira contar, Ehloá?

-Não. -Respondo lentamente e encaro os olhos de Ravi.

-De qualquer forma, preciso voltar ao trabalho, ainda há muito o que fazer.

-Mas mal terminou de se alimentar. -Contesto. -Não pode se esforçar tanto se não se alimenta na mesma proporção. -Ravi não diz nada, ele sabia que era inútil tentar convence-lo a ficar um pouco mais. Não posso culpa-lo, é a forma que ele encontrou de abafar seus pensamentos. As vezes durante a noite ele não consegue e perambula por toda a casa.

Meu pai se levanta, lava suas mãos e a boca na pia da cozinha, me olha. Parece pensar em algo a dizer, mas ao invés de compartilhar apenas deu-me um meio sorriso e saiu para voltar ao trabalho. Agora estamos apenas eu e Ravi.

-Não contou a ele? -Pergunto assim que a porta da cozinha se fecha.

-Ele já tem a cabeça muito cheia e mal da conta das coisas que o assombram, não precisa de mais uma.

Um breve silencio.

-Tem certeza que não foi apenas um sonho? Pode ter apenas se assustado, é normal ser assombrada pelo passado, ainda mais um que ficou guardado na memória tão fortemente. -Sempre procurando uma explicação lógica primeiro, eis o Ravi. Apesar de ter presenciado tudo o que aconteceu da última vez, ele ainda prefere tentar explicar, é mais fácil assim, sei que é difícil de acreditar.

Crescemos em uma família consideravelmente cética. Não é que não acreditamos em deuses ou no sobrenatural em geral, até acreditamos, só não vemos a possibilidade de o que quer que se esconda nas histórias entrar em contato com as nossas vidas. Isso até a alguns anos atrás.

O sonho que me acordou pela manhã pode não ter sido o primeiro mas, não é algo comum ou frequente, ele foi o segundo, nada mais.

A sete anos atrás eu tive um sonho tão real quanto esse, tão vívido e assustador quanto esse. Aos doze anos de idade, o que uma garota espera é poder cuidar de suas bonecas e brincar de casinha, Ravi sempre era o guerreiro que protegia minhas terras e meu pai era o mago que nos socorria após um ataque imaginário. Meus pais sempre foram de ouvirem e contarem histórias, embora meu pai vivesse entrando em nossas brincadeiras enquanto minha mãe cumpria sua função de nos alimentar de histórias antigas que conhecia desde garota. Nossos dias eram comuns. Nossa vida era comum.

-Ehloá! -Me assusto e volto toda a atenção ao Rávi. - Onde você está?

-Lugar algum, apenas pensando... -Digo, havia me perdido nos meus próprios pensamentos outra vez.

-Não ouviu uma única palavra do que eu disse? -Me pergunta um pouco frustrado.

-Me desculpe. -Digo, mas sem me sentir culpada por não dar ouvidos ao que ele dizia.

-Bom, não importa. O que quer fazer?

-Eu não sei. -Lamento, eu sempre lamento por esses sonhos, nunca são um bom sinal.

-Sobre o que o sonho falava? -Não sei dizer o que fala mais alto ou qual está mais presente em seu olhar, se é a curiosidade ou a preocupação.

-Uma bagunça, como da última vez.

Ravi suspira. Recosta em sua cadeira e coloca suas mãos atrás de sua cabeça, está pensando, embora eu ache que tantas coisas passando pela cabeça dele ao mesmo tempo não vão o levar a lugar algum, não vai nos levar a lugar algum.

-Devíamos contar ao meu pai. -Quebro o silêncio. -Talvez ele saiba o que fazer.

-Talvez. -Ravi se levanta da cadeira e retira sua tigela, faz menção em tirar a minha e eu permito com um aceno de cabeça. -Vai ficar me devendo essa, vou arrumar tudo para você dessa vez. -Não digo nada, apenas me levanto e lhe dou um sorriso em resposta mas, um sorriso sincero. E se, tudo estivesse planejado pelo destino? Talvez eu simplesmente não tenha controle sobre isso.

Me dirijo até a janela da nossa sala, uma janela simples mas bem trabalhada e pintada, havia um pequeno vaso de flor que mantinha um lindo lírio branco em seu interior. Abaixo da janela, no lado de fora, arbustos de framboesa negra decoravam a casa. Eu gostava dali, era o nosso canto, nosso refúgio. As nossas memórias estavam ali, abaixo daquele teto, dentro daquelas paredes, sejam elas boas memórias ou não.

Quando crianças, eu e Rávi ouvíamos muitas histórias, desde pequenos contos do vilarejo próximo a nossas terras, até lendas contadas por todo o país e, talvez, até fora dele. As vezes ouvíamos essas histórias durante o almoço, as vezes antes de dormir. Ouvíamos histórias todas as vezes que desobedecíamos, minha mãe nos alertava assim, era o jeito dela de nos ensinar as coisas.

Algo estranho me chama a atenção e me tira dos meus pensamentos. Havia um homem correndo, desesperado, rumo a nossa casa, parecia ferido. Apertei os olhos para ver se enxergava quem era.

-Ravi! -Grito. -Rávi, rápido.

Percebendo o tom de alerta em minha voz, Ravi vem até mim num instante.

-Corram, saiam dai, rápido! -Era meu pai, correndo em nossa direção para nos mandar fugir.

Saio de perto da janela, corro em direção a porta da frente para ir até meu pai mas, sou interrompida por um puxão no meu braço, era Ravi.

-Não. Vamos sair daqui, já não tem como mais ajuda-lo. -Disse sério, seu olhar mostrava quão preocupado e confuso estava. Meu pai havia sido atravessado por uma lança no peito e caído em frente a casa, estava morto. -Rápido Ehloá!

Ravi me colocou a sua frente, uma última olhada pela janela foi o suficiente para que eu pudesse ver dois homens a cavalo, um deles parando para recolher a lança enquanto o outro continuava vindo em nossa direção, corri até a porta dos fundos.

-Não me espere, corra e eu alcançarei você.

-O que vai fazer? -Gritei da porta, antes de sair.

-Pegar uma coisa. Agora vá! -Disse e subiu as escadas correndo.

Apenas obedeci, embora minha vontade fosse ficar com Ravi. Corri pelo vale, nossa casa ficava em um ponto alto do terreno, atrás da casa havia um pequeno rio e uma floresta, era para lá que eu devia ir. Ouço o relinchar dos cavalos. Corro o mais rápido que eu posso. Tropeço em meu vestido e caio, era um vestido azul claro, agora sujo pela terra. Ouço o trotar de um cavalo cada vez mais próximo.

-Ei! Você! -Grita o homem.

Me levanto e continuo correndo, a floresta está perto, o rio está perto. uma flecha voa e enterra sua ponta no chão, bem ao meu lado. Ele tinha um arco! Olho para trás brevemente, vejo apenas um homem, o outro deve ter ficado para invadir a casa. Eu precisava me livrar dele. Uma segunda flecha, dessa vez passa raspando em meu braço e causa um pequeno corte que sangra. Desgraçado!

Vejo a entrada da floresta, estou cansada, ofegante, não posso parar. Assim que entro na floresta sinto algo puxar meu cabelo e caio no chão com a força. O homem me rodeia com seu cavalo e para na minha frente.

-O que você quer?! -Digo. Raiva e ódio possuindo todo o tom da minha voz. Ele apenas sorri, malicioso. Desce de seu cavalo, arco nas mãos e um punhado de flechas em suas costas, se aproxima aos poucos.

Eu me viro e ameaço correr para outro lado, outra flecha voa e acerta minha bochecha de raspão. Paro.

-Saiba que errei de propósito. -Uma pausa, me observa de cima a baixo. -Pena que não posso tocá-la, não como eu queria pelo menos. -Diz.

Ele se aproxima mais e se posiciona em minha frente, atrás de mim está seu cavalo de pelagem tão escura quanto meu cabelo. O homem deveria ter em torno dos seus trinta e quatro anos, seu cabelo continha traços da velhice que viria cedo, seus olhos eram comuns, de um castanho quase preto. Além do arco e as flechas, ele carregava uma simples faca presa ao cinto, pelo cabo parecia não ser uma faca muito boa. Ergue sua mão e a pousa em meu rosto, eu me afasto e cuspo nele, o ódio ganhando força dentro de mim.

-Puta! -Diz com raiva e me da um tapa que me faz cair no chão. Ele me pega a força pelo braço e me levanta, eu começo a me debater até que ele segura meus braços para trás e se aproxima para amarrá-los. Quando chega perto o suficiente. Dou-lhe uma cabeçada e acerto seu nariz, ele se afasta e o tampa com a mão.

-Sua... -Antes que ele termine de dizer o que havia começado, eu o chuto entre as pernas e ele cai de joelhos com a dor. Me aproximo, tomo a faca que estava presa a ele e aponto em sua direção.

-Não pense que por ser mulher eu não tenho a coragem de te ver se debatendo até a morte com um corte no pescoço! -A raiva é tão presente em minha voz que tudo isso sai quase como um rosnado. Aproximo a faca do pescoço dele para dar ênfase no que eu havia acabado de dizer. Meu sangue que era azul, agora estava coberto pela terra úmida da floresta, poeira do vale e do sangue que saia do corte em meu braço. -Quem é você? O que querem?

-Você! -O homem fala com escárnio e ri. Eu aperto a faca contra o pescoço dele. A risada é interrompida por um tosse seca. -Só viemos pegá-la, fomos pagos para entregar você.

-Me entregar a quem?

-Chega disso! -Ele diz sério, segura meu pulso com uma das mãos e se levanta, meu pulso dói. -Só quero a minha prata, garota. Não me importa o que vai acontecer com você. -Ele se aproxima.

Antes que pudesse dizer ou fazer qualquer outra coisa, sua cabeça se separa do restante do corpo e cai no chão. Sangue me banha e vejo Ravi atrás do homem, com uma espada na mão e coberto de sangue.

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Eis o segundo capítulo da historia que publiquei recentemente. Antes de qualquer coisa: meus mais sinceros obrigada por lerem até o final. Comentem o que acharam para que eu tenha como saber se estão gostando ou não. Quem sabe essa história não se torne um livro meu algum dia.

Raposa da Neve
Enviado por Raposa da Neve em 31/05/2020
Código do texto: T6963178
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