Um Papo Redondo

Era aproximadamente meio dia.

Um tacho de goiabada, daquelas bem vermelhinhas estava sobre o fogão a lenha. Mamãe mexia o doce vagarosamente.

A fumaça vazava pelas frestas do chaminé quebrado, esbranquiçando o ar da cozinha. Quase um ambiente de glória.

Os gatos se empelotavam no cantinho da parede na almofada, devido ao frio. Eram uns três ou quatro, não me lembro bem quantos. Ouvíamos música. Eu, Mamãe e os Gatos. Às vezes aparecia algum bezerro na janela.

" Eu andei errado, eu pisei na bola", assim soou no rádio de Papai. Não tinha energia elétrica na casa. Para garantir o somzinho do dia, às vezes ferviamos as pilhas.

E não é que dava certo!

"Eu andei errado, eu pisei na bola". O gatinho rajado com listras cinzas apertava os olhinhos; talvez pela fumaça ou pela preguiça. Penso que os gatos gostam de música.

Eu tinha uns sete anos. Fiquei imaginando o que seria "pisar na bola". Um ano depois fora instalada a energia. Assistíamos o seriado Chaves na televisão preto e branco.

O Kiko tinha uma bola gigante de plástico. Para pisar nela seria desajeitado, mas ela estouraria por ser muito fina.

Gude, golf, futebol. Compreendi que dependia do material. A bola estouraria, ou até machucaria o pé de quem pisa.

Naquele tempo eu não entendia de decepções.

"Eu andei errado, eu pisei na bola". Talvez o Pires estivesse descalço. A bola amassara o calcanhar, ou ele levou um tombo.

Certa vez, brincando com minha afilhada, acertaram-me uma bolada na testa. Estávamos no parquinho com as crianças; e no lado de cima os moleques jogavam. A cabeça escureceu na hora e ficou dolorida.

Naquele dia, foi a bola quem pisou em mim.

Certa vez, um crush disse que eu "viajava".

Tolinho ele, mas é claro que eu viajo. Mulheres detalhistas são intuitivas. Mas é claro que eu viajo, pois escrevo!

Mal sabia ele da minha percepção.

Ele pisou na bola, mas ele era como a bola do Kiko, e eu a chutei para bem longe.

Pisar na bola não é nada. Depende muito do material a qual somos feitos. Aprendi a ser aquelas bolas de ferro que derrubam paredes.

E o Pires, será que aprendeu?

Poeta de Borralho
Enviado por Poeta de Borralho em 30/05/2020
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