Tipos humanos: César

Um homem robusto de cerca de 45 anos, 1,88cm de altura, de braços e pernas grossos e sem o dente pré-molar inferior esquerdo. Este é César. O detalhe do dente jamais é visto pelos que não são seus amigos ou, pelo menos, não levam uma mínima estima do grandalhão, porque ele não sorri para estranhos. César parece ser um homem de poucos amigos, mas engana-se quem, à primeira vista, crê que estabelecer um diálogo lúdico com o homem seja uma proeza irrealizável. No seu trabalho, ele costuma ser não gentil, mas camarada com os colegas, falando palavrões sem sombra de pudor e gargalhando alto de suas próprias piadas e causos. Como técnico em radiologia de um grande hospital paulistano, ele leva a vida a aproveitar das benesses que sua profissão lhe dá: trabalha apenas nas quartas e nas quintas, os outros dias da semana, entretanto, ele os ocupa com qualquer outra atividade que não seja o trabalho, como andar de bicicleta no parque do Ibirapuera.

Eu o conheci no dia em que cheguei ao hospital com uma carta de recomendação para ocupar uma vaga não remunerada na condição de estagiário de radiologia. Não sei se foi pelo fato d'eu ser tão ou mais alto do que ele, ou porque eu usava palavras e formalismos incomuns para me apresentar, mas, na primeira vez que o vi, César sorriu. Foi impossível não notar a falta de um de seus dentes na mandíbula do lado esquerdo, o pré-molar. Mas, acho que ele sorriu mesmo porque eu chegara com uma hora de antecedência. Isso foi proposital, pois no meu primeiro dia como estagiário, eu queria mostrar trabalho. Em sua companhia havia uma mulher que também era técnica em raio-X, seu nome era Roberta e ela não parecia estar de bom humor. Mais tarde, descobri que ela nunca estava de bom humor, talvez porque, a dois anos da aposentadoria e no pico da menopausa, ela já estava desistindo de manter aquela boa disposição para fazer as coisas ordinárias do cotidiano. Imagino que para pessoas nessa fase da vida, toda a lógica da boa convivência se desfaz, porque não há mais necessidade ou porque elas assim pensam. Uma pena.

"Vem cá, filhão", disse César me conduzindo até uma sala próxima onde eu poderia guardar minhas coisas e me trocar. Depois de vestir o jaleco e jogar para dentro de um de seus enormes bolsos um club social, um manual de bolso de posicionamento radiológico e uma caneta preta, saí para ir de encontro a ele rapidamente. Na sala onde os técnicos ficavam não havia porta, porque era necessário ver de imediato os pacientes que, munidos da solicitação do exame de raio-X assinada pelo médico, sentavam-se nas cerca de dez cadeiras afixadas no corredor, de frente para a sala onde os técnicos estavam. Eles, por sua vez, assim que viam algum paciente, levantavam-se de suas cadeiras, jogavam para dentro do bolso do jaleco o celular e, depois de ler a solicitação do exame que o paciente entregara, o conduzia para uma das salas de raio-X, onde os exames eram realizados. Nas adjacências do corredor, haviam duas salas de raio-X convencional, uma sala de raio-X odontológico, uma sala de tomografia computadorizada e outra de ressonância magnética. Nunca vi os técnicos operando outra coisa ali, senão o raio-X convencional. Isso me trouxe certo alívio, porque, na condição de estagiário, queria começar pelas coisas mais simples.

César me fazia perguntas sem importância enquanto olhava fixamente para a tela do computador da máquina que coletava as imagens das radiografias e as enviava, via sistema, para o computador do médico que solicitara o exame. Aquele era um método muito eficiente de processar as imagens. Durante as aulas, eu estudara os métodos antigos de processamento da imagem radiográfica: antes do advento das novas tecnologias, os técnicos revelavam as radiografias como os antigos fotógrafos faziam com suas fotos, na câmara escura. Se, por descuido do técnico, o paciente se mexesse e a região anatômica de interesse saísse do foco, o exame teria de ser refeito, o que iria expor o paciente a outra dose de radiação.

César me perguntou se eu estava preparado para fazer os exames. Eu respondi que ainda não, porque queria inicialmente apenas observar como ele e a outra técnica, Roberta, faziam. Permaneci, como um animal amestrado, no seu pé durante todo o transcurso das minhas quatro horas de estágio. César sorria, ele achava mesmo tudo engraçado. Acho que gostou de mim. Ele se dirigia com certa aspereza para os pacientes, sobretudo para aqueles que não sabiam se comportar como o orientado. Mas, para mim ele era solícito e procurava me tranquilizar sobre tudo, porque, na insegurança típica de estagiário, eu pedia perdão por qualquer erro bobo que cometia. Se César ria da situação e procurava, com verdadeira bondade, me tranquilizar, sua colega, Roberta, dava ensejo para o seu mal humor e saía da sala esbaforida sempre que ouvia de mim um "desculpe, foi um erro."

Caminhando ao seu lado, percebi que eu era um pouco mais alto do que ele. César tinha 1,88cm e eu, 1,93cm. Todos os funcionários do hospital que nos viam, enfermeiros, faxineiros, médicos ou os nossos camaradas técnicos em radiologia, ficavam pasmos ao ver dois homens imensos caminhando e conversando sobre filmes western, literatura clássica, política, cultura, livros e polêmicas históricas das mais cabeludas pelos corredores. Descobri sua personalidade peculiar expressa por essas suas preferências tão rápido quanto descobri sua carência do pré-molar inferior esquerdo. Acho que ele ficou extremamente feliz em descobrir que, depois de ser tutor de tantos estagiários desinteressantes, desinteligentes e até malcriados, teria a oportunidade de ter em sua companhia alguém como eu, que partilhava com ele a mesma cosmovisão.

Foi fácil pegar o jeito de realizar os exames, porque, como o hospital era um instituto de cardiologia, não havia solicitação de radiografias que não fossem do tórax, em duas posições: póstero-anterior e perfil. Esses eram os exames mais fáceis estudados em sala de aula. Acho que tive sorte, pois, com esse campo limitado de exames para fazer, eu tinha a oportunidade de estudá-los à exaustão, de modo que, em pouquíssimo tempo, pudesse dominá-los por completo. E foi exatamente o que fiz. Meus dias de estágio eram os mesmos do plantão do César, por isso eu o via sempre. Mas, às vezes, outro técnico me pedia para radiografar, o que eu jamais negava fazer. Em algumas ocasiões, a Roberta me permitia realizar alguns exames, no início eu errava com frequência, mas, já na semana seguinte e porque eu sempre revisava as especificações técnicas dos exames e tomava nota de todos os conselhos e macetes que os técnicos me passavam, eu os fazia perfeitamente. Isso, é claro, fez com que a Roberta e os outros técnicos depositassem cada vez mais confiança em mim.

Além do César, dois outros técnicos foram muito solícitos comigo e eu tratei logo de me mostrar prestativo para com eles. Celso era um veterano, assim como a Roberta, estava a um ou dois anos da aposentadoria. Era o mais velho dos profissionais do setor de radiologia e o mais prestativo. Eu fazia questão de anotar seus conselhos e de ouvir atentamente suas conversas. É impressionante a quantidade de informações que se pode obter sobre a vida de uma pessoa apenas ouvindo suas conversas. Eu não fazia por mal, é claro, mas não iria tapar os ouvidos sempre que me via na roda dos técnicos e cada qual começava a contar toda sorte de particularidades sobre sua vida pessoal e profissional. Ouvindo uma dessas conversas que o Celso tivera com outro técnico, eu soube que ele fora lesado por uma empresa, acho que fora uma clínica de radiologia, em dez anos. Isto é, teria de trabalhar mais dez anos para conseguir se aposentar. E faltava pouco mais de um ano. Ou seja, o Celso tinha mais de trinta anos de experiência como técnico em radiologia! Ele morava no litoral sul de São Paulo, no município de Praia Grande e subia a serra para assumir seu plantão, aos fins de semana. Eventualmente, ele aparecia no hospital em outros dias da semana também, embora tivesse plantão fixado aos sábados e domingos. Eram nestas ocasiões em que eu o via.

Além da Roberta, só havia outro técnico mulher no setor: Daniela Medina. Ela era uma mulher bonita, tinha olhos cor de amêndoas, o cabelo louro bronzeado e, apesar de aparentar já ter passado dos trinta e cinco, ainda conservava algumas curvas. Mas, haviam dois detalhes em sua compleição que a faziam perder pontos na minha avaliação subjetiva do que considero uma filha de Vênus: a Daniela tinha o timbre de sua voz desagradavelmente grave e um comportamento impulsivo que, somado ao vozeirão, não a permitiu receber minha classificação de uma mulher perfeita, no sentido de equilibrada. Sua beleza era manca. Ela falava palavrões sem pensar e vivia no celular. Mas, gostei dela, porque me dava conselhos valiosos que foram para o meu caderno de notas. E, assim como a maioria das pessoas ali -- e eu não sei o porquê de fazerem isso -- me contava de sua vida. Tinha dois filhos e um marido que estava se arriscando ao empreender um negócio de marketing digital; eles já prospectaram se mudar para o Canadá, mas o plano não vingou por mil motivos, decidiram adiar a mudança. Contanto que permanecesse em silêncio, sua presença poderia ser muito agradável. Fiz várias incursões pelos corredores do hospital na sua companhia, a Daniela insistia em levar o pesado equipamento de raio-X portátil até os leitos onde os pacientes aguardavam para fazer os exames. Isso me aborrecia, pois, na condição de homem forte, queria levar o equipamento eu mesmo, até para me mostrar prestativo. Acho que não foi difícil imaginar o que se passava na cabeça dos médicos e enfermeiros que nos viam caminhando pelos corredores assim: ela empurrando o equipamento pesado e eu ao seu lado, caminhando tranquilamente.

Mais tarde, a Daniela dissera evitar que os estagiários levassem o equipamento portátil, porque, não há muito tempo, um rapaz desastrado provocou um acidente e a culpa, claro, recaíra sobre o técnico responsável pelo grumete, ela. César era muito diferente, logo no início de minha estadia ali, não só permitiu que eu conduzisse os pacientes até a sala dos exames, mas que fizesse, eu mesmo, os exames; claro, sob a sua supervisão. Ao lado de César, pelos corredores, eu estava autorizado a, não só conduzir o carrinho do equipamento portátil, mas também a ajustá-lo no leito do paciente. O Celso também tinha mais confiança em mim, permitindo até que eu calibrasse o equipamento com a dosagem que eu escolhera de acordo com as características do paciente.

Nos intervalos entre os atendimentos dos pacientes, César, que era melhor gozador do que piadista, me contava as histórias mais estranhas e improváveis que eu já tivera a chance de ouvir. Não considero que as pessoas que riem de suas próprias piadas sejam más piadistas, pelo contrário, se uma pessoa ri com verdadeira efusividade de sua própria anedota, é sinal claro de que a piada é boa. Para além de ser chalaça, César era um excelente narrador dos eventos históricos nos quais membros de sua família estiveram envolvidos. Um dia, sem esperar, fui surpreendido pela história de seu bisavô que fora veterano na Guerra do Paraguai e que ele, César, conservava consigo uma abotoadura de ouro que pertencera a seu ancestral belicoso e inúmeros outros objetos da época do conflito. "Meu bisavô tinha de devolver todos os objetos emprestados a ele pelo Império depois da guerra, tudo, o rifle de fabricação holandesa, as botas, o quepe, o agasalho," disse ele, "mas, como meu bisavô não era bobo, deu um jeito de esconder aquela abotoadura de ouro para levar para minha bisavó," completou.

Ele também era amante dos livros. Soube que mantinha em sua casa uma coleção rara das obras completas de Júlio Verne e de Charles Dickens. Fico pensando: no cotidiano, as pessoas dão demasiada importância a coisas que não merecem importância, porque não têm. Quem, dentre os camaradas de labuta do César tinha conhecimento dessas particularidades de sua vida? Permaneci como estagiário naquele hospital por vários meses, mas nunca ouvi ninguém comentando esses aspectos da vida do César. Fiquei intrigado, mas fora o próprio chalaça que jogara a pulga atrás da minha orelha que me esclareceu a situação: "Sabe, filhão", disse ele, "eu gosto de conversar com você, porque percebo que você é diferente das outras pessoas que vêm aqui. Você gosta de estudar, de ler, de conversar sobre temas interessantes; você não é do tipo que perde tempo." Em todas as ocasiões em que eu vira César conversando com qualquer outro técnico do setor, percebi que os assuntos não gravitavam para longe dos temas banais ou maçantes do trabalho: reclamações, fofocas ou qualquer outro assunto que, se não tinha o teor de inveja, o tinha de maledicência. Nessas conversas desagradáveis César tinha sempre, como interlocutor, a Roberta.

Acho que eu levaria alguns anos para descobrir o quão bom é o filme "The Good, The Bad and The Ugly", do grande Sergio Leone, se meu companheiro de conversas edificantes não tivesse narrado -- mais de três vezes -- as cenas que julgou icônicas. E novamente, lá estava o espaço do pré-molar inferior esquerdo à mostra, porque o homem, enquanto narrava as peripécias do "feio" no filme, dava gargalhadas tão autênticas que eu me espantava em perceber que ninguém mais a nossa volta se dava conta do universo inabarcável que era César. Soube também que, antes de estudar na mesma instituição que eu, no metrô Saúde, e de se tornar técnico em radiologia, ele fora açougueiro. Morava com a mãe e a irmã numa casa próximo ao parque do Ibirapuera onde, nos seus dias de folgas, cinco por semana, passeava de bicicleta. Tinha também um tio, figura excêntrica, que era geólogo; referência de tal ciência no Brasil. Tanto que fora convidado para integrar uma equipe de geólogos brasileiros numa conferência na Suíça. Esse seu tio era o seu ídolo, seu modelo de vida. "Sabe, filhão," disse, "meu tio é meu maior exemplo, ele é intelectual assim como você. Ele parece Jesus Christo, tem os olhos azuis e os cabelos longos, assim, sabe?"

Muitas outras anedotas sobre sua vida ele me contou. Estava sempre com um assunto interessante e, assim que me via, tratava de me deixar a par de suas reflexões. Um dia, porém, quando cheguei para mais um plantão de estagiário, soube que meu amigo, César, fora demitido; os burburinhos que ouvi falavam qualquer coisa sobre uma discussão entre ele e a Roberta e de uma denúncia de agressão. Os técnicos em radiologia e os outros funcionários do hospital que conheciam o César, pareciam estar divididos quanto à verossimilhança da versão dada pela Roberta. Diziam que fora por pura inveja que ela armara para o nosso amigo. Bem, o fato é que ele nunca mais foi visto no hospital e o teor da sua versão dada para a chefia do setor nunca chegou aos meus ouvidos. A verdade é que todos ali tramaram para que César fosse demitido. Numa tarde, próximo do cair da noite, quando eu estava de saída do hospital no meu último dia de estágio, caminhei, como de costume, subindo a avenida Rodrigues Alves até chegar à estação Ana Rosa. Antes de desaparecer no subterrâneo da estação, tive a impressão de ter visto um homem semelhante ao César ali pelas adjacências da entrada da estação. Não fui atrás para confirmar, o que eu lamentei depois, porque lembrei que ali, na entrada da estação, havia um açougue.

Vitor Marcolin
Enviado por Vitor Marcolin em 27/05/2020
Reeditado em 04/06/2020
Código do texto: T6959802
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