CAFÉ PARIS / LITERATURA FLUMINENSE 3
VIOLANDO AS REGRAS GRAMATICAIS
Nelson Marzullo Tangerini
Nem só de bar e de noite viviam os rapazes do Café Paris. Nestor Tangerini, que, entre os “parisienses”, ganhou o apelido de “olho de Moscou”, por ser cego da vista direita e enxergar muito bem com a vista esquerda, em se tratando de uma bela deidade, estava, certa vez, na praia de Icaraí, “em dourada manhã de sol”, em companhia de poetas amigos, “a saborearem as sereias no banho”, quando surge, passando por eles, uma das mais “deliciosas” garotas da cidade. “E, ao passar, sente que os poetas “a devoram em cobiçoso olhar”.
A deusa “faz rápida parada, plantou-lhes dois olhos fuzilantes, como que a reclamar a presença de um guarda, e segue seu caminho, sambando as curvas, desmanchando a gente...”
Malicioso e sátiro, Tangerini escreve e dedica-lhe o soneto Você, publicado, posteriormente, nas revistas A Nota, em 8/11/1935, Vida Nova, Rio, DF, Edição de Natal, em 1943, pág. 13, em cartão, distribuição interna, da peça “Estupenda!!!”, de Nestor Tangerini, para a Cia. Teatral Jardel Jércolis, Teatro Carlos Gomes, Rio, DF, 1936, e na revista literária Ilustração Fluminense, Niterói, RJ, 25/2/1956, e, posteriormente, no livro “Humoradas...”, Editora Autografia, Rio de Janeiro, RJ, 2016:
"VOCÊ
Quando meus olhos, cheios de carícia,
a envolvem toda em cobiçoso olhar,
você me julga um caso de polícia
e só falta, de raiva, me matar.
Porém você, que é fonte de malícia,
a si mesma é que deve condenar.
A culpa é sua, de mulher delícia,
boa demais para se respeitar.
Vendo-a, não há quem não se desbandeire,
porque você, nas formas tão enfática,
é um atentado ao Laudelino Freire.
Você provoca os próprios imortais;
você viola as regras da gramática
você – é muito ótima demais!”
Quem conheceu Nestor Tangerini sabe que o poeta era um homem extremamente gentil e respeitador, embora cítrico em seus comentários. E esperamos que os machistas e tarados, após lerem este soneto sensualíssimo, se é que eles têm intimidade com a literatura, não saiam por aí culpando as mulheres pela sua beleza, pelas curvas, pelas pernas, para os decotes, ou pelo shortinho. Até porque o desrespeito, aqui, fica apenas na poesia, que viola as regras propostas pelo gramático Laudelino Freire.
Para aqueles poetas da década de 1920, um simples maiô já era motivo para suspiros, poesias e músicas. E cometer deslizes gramaticais, neste caso, proposital, como vemos no último verso do 2º terceto. Hoje, porém, olhar fixamente para uma mulher é, também, uma forma de violência, e eu concordo com elas. O poeta, certamente, concordaria, também.
No início daquela década, o audacioso soneto “Quando ela passa”, escrito por Nestor Tangerini e também publicado numa crônica deste livro, e, futuramente, no livro Humoradas...., Editora Autografia, Rio de Janeiro, RJ, 2016, causaria um rebuliço entre os conservadores de Niterói, por escrever, referindo-se à musa, o verso “um desejo malvado de comê-la”. Tal desejo “antropofágico”, mais uma vez ficou restrito às linhas eróticas da poesia e no “plano das ideias”. Como no soneto Criatura Doce, publicado pela primeira vez no jornal “ENTRE AMIGOS / ESPECIAL – Para a eternidade -Nestor Tangerini” - Ano I – No. 3 -pág. 2, do Editor Vilnei Kohls, Porto Alegre, RS, 1999, e no livro “Humoradas...”, mais uma vez aqui citado.
"CRIATURA DOCE
Singularmente boa, apetitosa,
de deixar a qualquer logo embeiçado,
Doninha X é um fino bombocado,
o tipo da garota saborosa.
Alva como um suspiro imaculado,
até na cor é doce, deliciosa.
Seus Olhos são dois sonhos, e a mimosa
boca vermelha, um favo nacarado.
Quase não sei dizer o que é que sinto,
quando a vejo passar, tão docemente,
ao meu olhar de sátiro faminto.
Sempre que a vejo, toma-me um nervoso...
O seu ponto de bala põe-me doente!
- Se ela soubesse como eu sou guloso..."
Os sonetos reproduzidos nesta crônica foram também publicados em meu livro “Perfil quase perdido – uma biografia para Nestor Tangerini”, registrado na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, em 2000.