A CIDADE DORME.
Clima frio, outono, dias estressantes, a vida parece ter se estagnado, trancada em um tenebroso calabouço — o que no final das contas dá na mesma. Da aurora ao alvorecer, o tempo passa lentamente em cada tic e tac, é a tirania do tempo quase a nos enlouquecer. A verdade é que somos péssimos administradores de nosso recente abundante tempo. Se conseguíssemos administrar o nosso ocioso dia, de forma a fazer o que realmente é necessário dentro de nossas prisões domésticas, talvez não estaríamos à beira de um colapso nervoso. Mas, às vezes, para não dizer quase sempre, somos surpreendidos e distraídos com as tecnologias ao alcance das mãos. No entanto, essa facilidade descabida nos deixa acomodados, sem vontade de nada, preguiçosos. Quando nos damos conta do que foi se perdendo no caminho, percebe-se que é tarde demais para se tentar consertar alguma coisa, o que foi, não voltará mais. E novamente, tudo será o silêncio de sempre, que às vezes acomoda a alma e incomoda o coração.
Sou este ser sem qualidades, observando a vida alheia da janela dos meus olhos, sem gosto, sem nada, em pleno maio, sou esta sombra estática e sem forma.
A cidade corre, briga, se esbarra, para, voltar a correr — não era para ser desse jeito em plena quarentena — Alfredo está impaciente na fila do banco, ele quer sacar logo o auxílio do governo, coloca a culpa nas moças do caixa. Dentro do banco, as moças do caixa no que lhe concerne, cansadas, estressadas, coloca a culpa na impaciência dos clientes, 'o sistema do banco está lento senhor, travando', elas dizem, os clientes não querem entender. Ninguém quer entender ninguém.
A cidade trabalha exaustivamente, empreiteiros em obras monstruosas e intermináveis em plena avenida. Seu José está impaciente, a obra travou a Itavuvu, atrapalhou o pouco do comércio já prejudicado. Na obra, seu Amarildo e amigos decidem almoçar no bar da baiana, tomar uma antes de voltar ao batente. Alguns colegas criticaram tal atitude, que também foram criticados por criticarem tanto. Ninguém entende ninguém.
A cidade escraviza e mata, levá-nos a forca a todo o momento.
Não há mais o que fazer.
Todos dormem agora, a noite veio rápido. Alfredo, Ana, Carla, Josiane, Amarildo, Rodnei, Carlão, enfim, a cidade dorme. Não se enganem amigos leitores, o monstro apenas cochila, ele sempre desperta ao romper da aurora, sedento de almas sorocabanas. Pois, o monstro bem sabe, que ninguém entende ninguém.
Enquanto isso, à covid-19 continua fazendo suas muitas vítimas, poucos se importam. No noticiário a mesma coisa todos os dias, não se fala em outra coisa. A cidade ainda dorme, indiferente ao vírus assassino, indiferente às pessoas e tudo mais que se possa imaginar. Amanhã será um novo dia, para Josiane, Amarildo, Rodnei… (Mega) feriado, (mega) churrasco na casa do Alfredo também, que aproveitou cada centavo do auxílio para comprar carne e cerveja. Afinal, 'ninguém se importa, ninguém entende ninguém mesmo', pensa ele. Os dias seguem em busca de mais um dia assim.