Voltando no Tempo
Nacib Hetti
A emoção em uma leitura pode atrapalhar a própria leitura. Você lê uma passagem e começa a refletir sobre ela. De repente percebe que seus olhos continuam lendo, mas a memória está no espaço anterior. Foi o que aconteceu comigo com o livro do sociólogo Maurício Cadaval: “Hábitos de Alimentação numa Família Mineira”. A narrativa se refere a um tempo pretérito, de sua infância e adolescência. Enquanto a história dele se passa no Bairro de Santa Efigênia a minha, contemporânea, se passava em Santa Tereza. Habilmente ele coloca quase toda a narrativa na voz de suas irmãs e trata seus pais na terceira pessoa. Talvez num esforço para transferir a emoção.
As décadas de 40 e 50 em Belo Horizonte têm um sabor especial para os garotos de classe média que viveram a época. Sabor aqui nos diversos sentidos. “A alimentação, assim como a música, é uma das áreas mais sensíveis da memória afetiva”, está lá no prefácio. Havia muito de mineridade na nossa alimentação. Almoço era com arroz, feijão, uma carne e uma verdura, com os “up grades” dos sábados e domingos. O café da manhã era pão com manteiga e café com leite, com direito a um eventual mingau de fubá ou aveia. Frutas, da estação, só nos lanches. O jantar com a tradicional sopa, variando de legumes a macarrão.
Para mim, o que mais importa na memória do Cadaval, não se relaciona à alimentação, mas sim às circunstâncias. Suas referências à feira livre do Colégio Arnaldo, por exemplo, me levam para o local, quando eu ajudava meu pai com uma banca de roupas, por ele fabricadas em uma confecção no Bairro Pedro Segundo. A Padaria Globo, com seus sorvetes, tinha nossa correspondente na Padaria Celeste na Rua Mármore. O escovão com palha de aço no piso com tacos, aos sábados, era quase um castigo compensando um saudoso período de nossa infância. Estavam lá, nas duas infâncias, o amolador de facas, o funileiro, o leiteiro e o verdureiro.
Memorialista, sem o título, com pitadas de saudosista titulado, o autor já tinha nos brindado com uma bela crônica familiar, no seu livro “Mosaicos”, onde procura suas origens e transmite sua experiência de vida. Memórias de um período difícil na militância política nos seus tempos de estudante até sua especialização em política de transporte urbano. Mesmo sem querer, o novo livro é quase um complemento para a narrativa de uma existência, desde os bancos das escolas até o magistério na Universidade de Brasília.
Voltando ao tema principal do livro, encontro reminiscências nos ajantarados de domingo, com frango assado, maionese caseira, arroz de forno e macarronada. Para os adultos tinha cerveja e eventual vinho e para os meninos guaraná. Nossa diferença básica estava no sábado. Enquanto na casa do Cadaval o cardápio de sábado era parecido com o nosso de domingo, o nosso sábado era, sempre, um almoço libanês, com quibe assado e todos os acompanhamentos de direito. Nos dias de aula tinha a merendeira, com café com leite, algum pão ou bolo e uma fruta e na parte da tarde o indispensável lanche. Mesmo sem os deliciosos pratos do antigamente seria bom voltar no tempo. Só voltar no tempo