O cão e o mendigo
Subo as escadas pulando degraus, pois rolante só a do outro lado. Por essa, reduzo uns bons cinquenta passos pela calçada. O sol brilha ainda meio enfastiado por entre as nuvens dessa São Paulo cinzenta e desconexa no fim da manhã. O trânsito me obriga parar na esquina da Haddock. Livro-me de alguns folhetos ao fugir das mãos estendidas em busca de possíveis clientes para o almoço. Meus olhos se perdem no brilho dos vidros nas fachadas. Reflexos do sol como joias suspensas entre os prédios.
Segue a vida. Desvio dos trechos quebrados da calçada – um tornozelo torcido não está nos meus planos, afinal, alguns compromissos à frente exigem um pé inteiro. Vou elaborando o que fazer nessa tarde e nos próximos dias. Então, nova parada para o semáforo e aproveito para absorver esta paisagem petrificada e tão movimentada ao redor, quando vejo o pequeno cartaz: peço ração para o cão!
Cravado na esquina à frente, um abrigo de papelão, com não mais de um metro quadrado, de onde se veem algumas peças de roupa amarfanhadas, socadas por baixo dos pedaços do papelão rasgado. Sujas. Vejo um sapato. Um. Sem cadarço. O salto está gasto. Cinzento. A ponta faz uma curva para cima. Cheio de rugas. Não vejo o outro. Penso que talvez tenha encontrado somente um. Um prato para ração e um pote para água. Penso no morador do minúsculo barraco improvisado. Penso que a tarde irá chover. E, na parte de cima, pendente está a placa: peço ração para o cão.
Quem quer que seja o morador do pequeno barraco – se é que se pode chamar de barraco um amontoado de papelão velho, encostado à parede, embaixo de um degrau de fachada, de uma das maiores avenidas do mundo – não está por ali. Nem o cão. Provavelmente estão à procura de comida, água, sabe-se Deus onde! Alimento para o cão!
Continuo meu trajeto pensando na humanidade desse estranho que, em primeiro lugar, preocupa-se com seu animal em detrimento de si. Dou liberdade à minha imaginação, e começo a criar um retrato desse ser e seu cão. De onde vem, como se encontraram, e principalmente, qual a perspectiva de vida futura. Sigo em frente. Tomo o ônibus. Vou trabalhar. Vêm outros dias, outras semanas. O tempo passa.
Volto à mesma escada, à mesma calçada, à mesma esquina. E lá está a placa pedindo ração para o cão. Desta vez paro na esquina e procuro pelo dono do animal. Novamente seu barraco improvisado está vazio, e nada do cão. Quem verdadeiramente mora ali? As mesmas roupas empilhadas, o mesmo sapato solitário. Entro na loja p’ra fazer um pouco de hora. Saio e vou até a outra esquina. Tomo um café e espero. Esse trecho da cidade, como muitos outros, possui um movimento frequente, veloz, pessoas apressadas, homens e mulheres de negócios, transeuntes. Há uma vibração no ar, mas ali, naquele canto, não tem pulsação, não tem movimento. Só olho para a placa. A bendita placa “peço ração para o cão”! Desisto e vou embora. Mas voltarei! O trabalho, a vida, o dia a dia não me permitem perder tempo por causa de uma placa. Passam-se alguns meses. Uma nova estação é inaugurada. Mudo meu itinerário e esqueço o cão e seu mendigo. Penso que esqueço. Mas não!
Aquele pedido me comove. Não é um pedido de comida, de roupas, calçados, remédios, emprego. É um pedido para o cão. Não há neste desconhecido uma ânsia por algo destinado a si mesmo. Há um total desprendimento de suas necessidades, há uma generosidade nesse gesto, uma entrega que sensibiliza e emociona. Esses dois seres, desconhecidos, habitam meu imaginário. Crio imagens para ambos, mas ai percebo que nada sei sobre eles! Se homem ou mulher, se macho ou fêmea, pequeno ou grande porte. Nada sei! Com uma nova perspectiva, resolvo voltar à esquina e descobrir. Mas não posso voltar de mãos vazias! Isso não! Compro um pacote de ração e uma garrafa de água e vou, com a certeza que desta vez encontrarei ambos e, sentirei ao olhar, esse elo que liga os dois – mendigo e cão.