Nave de Passagem
Quando me buscares, não mais estarei aqui, não quero ser o último a embarcar nessa nave de luz. O vento já vem soprando em busca dos retardatários da vida, a nave não espera por ninguém. A sombra da tarde confunde os rostos dos que ficam e a lua ilumina a face dos que querem ir. Dos que saem pelos caminhos que um dia foi prometido para que não houvesse nenhum lamento nos olhos dos meninos e meninas, dos filhos e filhas do trabalho honroso ou escravo, dos puros e dos delinquentes, dos anjos que não foram para a catequese quando chamados.
Se me olhares nos olhos não verás o brilho que carrego e não entenderás o meu rosto, e jamais verás a luz que trago n’alma. Tenho todos os sonhos adormecidos, que foram escritos em tempos pretéritos. São rabiscos feitos em papeis avulsos que mantenho guardados na mente que ainda está sã e sonhadora, mesmo com esses contratempos de ventos e sombras que sopram em todas as direções, fazendo vítimas, indiscriminadamente: negros, brancos, pardos, europeus, americanos, do norte e do sul, e tantas outras raças por esse mundo afora.
Ainda com tudo isso, a minha mente viaja em devaneios, que são permitidos nas noites quentes de lua cheia, ou mesmo na lua minguante. A lua nos remete a delinquir. Ela sugere pecados que serão perdoados assim que a nave chegar ao ponto final.
Quando voltares, verás que minha mala já não está sobre o guarda-roupas do quarto como de costume. O mesmo quarto onde deitei para dormir à espera da tua companhia, sem contudo ter feito um poema que falasse de amor, ainda que em rimas de dor, como são os mais lindos, e que são lidos as lágrimas pelas criaturas que teimam em amar.
O amor, tão grandioso como é, deveria criar uma luz de felicidade eterna, mas não! Ele está sempre na dor, a espera do fim, seja pela perda do ente querido ou pela traição do hipócrita que existe em cada personagem seja real ou fictícia.
A luz da nave dá o sinal de partida. Não há uma chamada por ordem alfabética, todos devem estar atentos a tudo a sua volta.
Naquela primeira noite da viagem ficamos todos juntos prestando muita atenção ao noticiário. As conversas foram diminuindo a medida que o tempo passava. Na embriaguez do sono eu observei que mesmo a nave estando em alta velocidade algumas pessoas continuavam a entrar e se acomodarem nos bancos. Eu tive uma pequena dúvida se eram de fato pessoas ou simples espíritos que estavam em busca dos seus corpos, e essa preocupação tirou-me o sono: seria eu, também, um espirito?
Saí a andar pelo corredor da nave. Tentei falar com as pessoas ou com os espíritos, mas ninguém me ouvia, ou fingiam não ouvir. Então resolvi voltar ao meu lugar. Não o mais encontrei. Todos os lugares eram iguais, nada identificava onde eu estava anteriormente.
Eu não tinha levado nada para essa viagem, nem a mala eu consegui localizar. Acho que na correria eu a deixei em cima do guarda-roupas, deve ter sido isso mesmo, não me lembro de tê-la trazido comigo. Recostei em um canto qualquer e esperei o dia clarear para eu poder me orientar direito. O silêncio era quase total, um pequeno zumbido vinha da parte traseira da nave, agora já não sei direito se traseira ou dianteira, tudo era igual. O barulho parou, só eu estava acordado, as janelas continuavam abertas, ninguém mais entrava como antes, parece que as pessoas já estavam cansadas: todas dormiam profundamente. Comecei a me preocupar, o dia não clareava!
Olhando pela janela, eu não via a lua, tão pouco as estrelas. Eu não tinha um relógio de pulso. Como saber as horas? Ao passar a mão pelo pulso notei que batia lento, quase parando. Contei as batidas, não passavam de umas poucas dezenas, acho que menos que quarenta e poucas, saí andando a procura de alguém que pudesse me socorrer, que pudesse medir os meus batimentos cardíacos, quem sabe encontrar ali um médico cardiologista ou mesmo o seu espirito, tomara que ele não tenha esquecido o seu estetoscópio como eu esqueci a minha mala.
O desespero foi tomando conta de mim, eu gritei alto, uma, duas, três ou mais vezes, o meu grito não era ouvido, comecei a tossir um cheiro de mofo invadiu o espaço onde eu me encontrava. Eu não via outra saída, a não ser ir pra janela, tentar respirar um ar puro. Porra nenhuma o cheiro de mofo vinha exatamente daquela janela, corri pra outra, o mesmo cheiro a me sufocar, aí não teve outro jeito, gritei novamente desesperado, agora eu clamava a Deus por um pneumologista, ninguém me ouvia, moço, moço meus pulmões estão carregados, nada. Ninguém naquele lugar me ouvia. Num impulso derradeiro me atirei da janela... Graças a Deus era um sonho. Esse coronavírus ainda vai nos deixar loucos!