A Velhinha da praia
A VELHINHA DA PRAIA...
As ondas quebravam na vastidão do infinito, e a espuma vinha se desvanecer nos pés de Doralice... Dona Doralice...
Oitenta anos...
Escutava, ao longe, a algazarra dos bisnetos...
no alpendre de sua casinha.
- Dona Doralice... Tudo bem? A senhora sempre fica aqui sozinha na beira da praia?
- Oi Doutora Márcia, tudo bem sim. Mas eu não tô sozinha não...
- Não??? Perguntou a magistrada, como a pensar que a velhinha estivesse esclerosada.
- Tô com Deus, Doutora, Ele nunca me deixa sozinha...
- Posso sentar aqui, com a senhora?
- Puxe a cadeira - disse a anciã brincando.
- Sentar assim, direto na areia é bom, não é?
- É sim, Doutora, eu faço isso desde novinha... Pra sentir a energia da terra, do mar...
- A senhora chegou aqui com quantos anos?
- Eu nasci aqui. Papai veio com mamãe pra cà, fugindo da seca do interior do estado...
- Ahhh, então a senhora conhece essa praia melhor que ninguém...
- Não, tem Seu Ciço pescador, ele tem cem anos e chegou aqui com dez, conhece mais do que eu rsrs. Pescava até uns anos atràs...
- Cem anos? Um nativo de cem anos, que coisa linda! Me conte como era essa praia antigamente. A senhora deve ter muitas histórias...
- Era muito diferente, não tinha essas casas bonita de veraneio, era só a nossa vila, de pescadores e rendeiras. A maioria das casas era de taipa, cobertas de palha, sem energia.
- Deve ter sido uma vida bem dura, não é mesmo?
- Foi não senhora... Era bom que só!
- Mesmo sem energia?
- Sim, e nem rádio pegava que prestasse, mas era muito bom. Não tinha esse negócio de roubo, de droga. A gente vivia de porta aberta, e a riqueza era ter comida. Aqui, graças a Deus, nunca faltou comida pra gente.
- Muita fartura?
- Ah, pra gente era sim. Sempre teve peixe, coco, caju, manga, mangaba, jaca, goiaba, horta e um roçadinho que dava o resto.
- Comiam peixe todo dia?
- Era, mas não enjoava não, variava o preparo: Assado na brasa, cozido, assado no óleo, seco e por aí vai. As vezes a gente matava uma galinha, numa data mais assim... E ovo tinha todo dia também.
- A senhora ia ter seus filhos na cidade?
- Não, tive onze em casa, ali ó, aonde moro até hoje. Se criaram oito.
- Quem fazia os partos?
- As mães da gente, as avós, as tias... Depois ensinava às mais novas.
- A senhora fez algum?
- Fiz muitos, perdi as contas... E ensinava às mais novas a fazerem. Aqui não vinha médico, não tinha nem posto de saúde. Sou madrinha de muita gente.
- Que coisa admirável. Então a senhora trabalhava de parteira?
- Não, eu fazia por gosto mesmo. Aqui ninguém cobrava pra fazer um parto não, era uma honra ajudar. Trabalhei também foi de professora!
- Interessante, pensei que não houvesse escola na vila, antigamente.
- E não tinha mesmo não, veio ter de uns tempos pra cà!
- A senhora ensinava nas casas?
- Não, ali debaixo daqueles pés de manga, em frente a minha casa.
- Sem carteira, sem quadro?
- Tinha uma mesa grande. Eu Fazia uns cartazes, ia mostrando e desarnando os meninos na leitura e nas quatro operações de matemática.
- Mas a senhora ganhava não era?
- Às vezes um trazia uma galinha. Outro trazia uns ovos, uma goma, umas verduras, um doce, um bolo... Essas coisas. Mas a maioria era até mais pobre que eu, e não trazia nada, só o gosto de aprender.
- Era um trabalho voluntário...
- Era por gosto mesmo! Até hoje, tem mulher que jà é avó, homem que jà é avô, e tem muito grau comigo, porque fui eu que desarnei eles.
- Quantos valores diferentes.
- Aqui era bem dizer uma família. Todo mundo se ajudava. Eu também precisei muito dos outros...
- E eles?
- Sempre me ajudaram, a mim e à minha família. Quando a gente foi fazer a casa, veio todo mundo ajudar...
- De graça?
- Pela amizade. Aí a gente fazia um cumê pros omi que tava no pesado. Mas isso era com todo mundo que precisasse.
- A senhora chegou a viajar?
- Não viajei muito, mas conheci várias cidades, achei lindo...
- A senhora chegou a ir aonde?
- Conheci Natal, São José, Nísia Floresta, Parnamirim, Macaíba, São Gonçalo, Extremoz e até Ceará Mirim. Tà vendo como eu conheci muito canto?
- Sim, realmente. E o que mais chamava a atenção da senhora nesses locais?
- As feiras, as Igrejas, era cada uma mais linda que a outra. A ruma de carro, de gente. Sou satisfeita com o que vi, graças a Deus.
- Dona Doralice, quanta coisa bonita a senhora está me contando. Eu veraneio aqui hà dois anos, conhecia a senhora por nome, sempre a via por aqui, sentadinha, cumprimentava, mas nunca havíamos conversado.
- Pois a senhora esteja convidada para ir ali no meu rancho, qualquer tarde, pra tomar café com tapioca molhada.Minha neta vende, mas de visita não se cobra.Vai ser por minha conta.
- Aceito com muita honra o seu convite. A propósito, sempre compro umas tapiocas muito gostosas a uma garota morena, que vende na porta do mercadinho.
- A garota é negra mesmo, é Jurema, minha neta.
- Olha, que coincidência, Dona Doralice. Estou muito edificada desta conversa toda com a senhora. Como conseguiu chegar à maturidade tão bem?
- A velhice... É isso mesmo. Eu nunca fui de ficar imaginando nas coisas... Não dava tempo!
- E como a senhora fazia para não ficar pensando na vida?
- Tinha tempo não, aqui toda vida foi pequeno, mas minha luta sempre foi grande. Muito filho pra criar, muita roupa pra lavar, comida pra fazer, e ainda tinha de pegar água no poço, lenha pra cozinhar, ensinar o povo a ler, fazer parto, varrer terreiro, alimentar os bichos, horta... apanhar fruta, ajudar na colheita do roçado...Tinha tempo sobrando de jeito nenhum!
- E à noite, quando ia dormir?
- Rezava e jà adormecia, só acordava quando o dia clareava!
- E o seu esposo?
- Deus levou faz uns meses.... sessenta anos de casamento.
- Difícil, né?
- É, mas é isso mesmo, foi Deus que levou. A gente sempre viveu bem e com respeito, ele nunca bebeu, nunca fumou e nem jogava.
Valeu à pena! todos vamos um dia!
- Verdade...
- Fique pensativa não, doutora, lembre do meu conselho. A vida é muito boa!
- A senhora é uma mulher feliz!
- Sou, muito, graças a Deus. Nunca faltou nada pra gente e o mar nos abençoa de dia e de noite!
Doutora Márcia saiu muito tocada...
Thomas Saldanha Natal, 20/05/20.