Adão e Eva
Essa semana, após dias de luta pela vida, morreu o sogro de minha irmã caçula. Essa notícia abalou a todos que o conheceram. Minha família conheceu a dele, na década de 90, na igreja onde ambas cantavam, cada qual em um grupo: o Geração Franciscana (Gefran) e o Irmão sol. Anos depois, elas reuniram-se para louvar juntas no Gefran. Eu tinha 15 anos na época, minha irmã caçula tinha apenas 7 e meu cunhado, por volta dos 11. Ainda na adolescência, eles começaram a namorar. E casaram-se em 2018, unindo as parentelas em uma única tribo. Minha irmã sempre foi muito bem tratada por todos na casa dos sogros, eles a adotaram como filha. E a recíproca creio que ter sido verdadeira.
O sogro de minha irmã era uma pessoa exemplar em tudo o que fazia: na profissão (era médico), na igreja (era diácono), como filho (cuidou da mãe com Alzheimer até a morte), como pai, como avô, como ator (fazia parte do grupo de teatro da igreja, consagrando-se no papel de Pôncio Pilatos!) e, principalmente, como marido. Viveu por 48 anos com a esposa até ser vitimado pelo Covid 19.
Por vários motivos, sua morte me comoveu. Por tê-lo conhecido a tanto tempo, fazendo parte de minha história. Por ter tido a honra de atuar com ele no grupo de teatro, vê-lo atuando surpreendeu a todos, pois se doava por completo. Por ser pisciano, como eu (nascemos no mesmo dia e mês!), o que explica sua veia artística, sua sensibilidade. Por minha irmã, pois tenho certeza que o amava como a um segundo pai. Por meu cunhado, que viu seu espelho quebrar-se, sem poder estar ao seu lado. Pelo momento impiedoso em que vivemos, no qual não podemos sequer nos despedir. Mas o que tocou profundamente em minha alma foi a grande perda que sua esposa teve.
No dia subsequente a sua morte, meu marido e eu completamos 19 anos e oito meses de relacionamento, faremos 20 anos de caminhada em setembro. E uma de minhas maiores preocupações durante essa pandemia é com a saúde dele, que é asmático. Apavora-me a ideia de perdê-lo. Não saberia o que fazer. Temos um filho tão pequeno ainda. Vivemos longe da família. E temos uma longa história pela frente junto com nosso amado menino. E não podemos, nem queremos perdê-la por nada.
Muitas vezes ouvi pessoas dizerem que marido não é parente. Sei que são amarguradas, são frutos de experiências frustradas. Durante a adolescência, ao ver meus pais separarem-se, também pensava dessa forma e, por estar revoltada, achava que nunca casaria. Mas, quando encontramos alguém realmente disposto a nos acompanhar, levantar e impulsionar durante a caminhada e vice-versa, é muito especial, reconfortante.
Por questões ideológicas, há tempos tornei-me uma pessoa avessa às instituições religiosas (mas, que fique claro, não nutro qualquer tipo de ódio por elas e admiro muito aos que se lançam com fervor na missão de evangelizar, desde que respeitem as diferenças!). No entanto, como a maioria dos brasileiros, sou cristã e leio a Bíblia. Há passagens cheias de sabedoria, as quais guardo com carinho no coração e tento praticá-las.
Entre elas, estão as seguintes: “Melhor é serem dois do que um [...] Porque se um cair, o outro levanta o seu companheiro” (Eclesiastes, capítulo 4, versículos 9 e 10) e “[...] ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade.” (Malaquias, capítulo 2, versículo 15). Ambas mexem comigo, porque muitos casais separam-se por causa da deslealdade e da falta de companheirismo. Elas me estimulam a valorizar e primar por nossa história de anos de vida em comum (e sei que a ele também!). Gosto muito de chamar meu marido de companheiro de minha mocidade. A palavra companheiro/ companheira (essa aparece também no versículo 14, do mesmo capítulo de Malaquias) tem uma força persuasiva muito grande, arrebatadora.
É importante os casais tratarem-se como iguais, como companheiros. Inclusive essa é uma de minhas críticas a algumas igrejas que distorcem algumas passagens bíblicas para preservar uma tradição machista, criada pela sociedade, de que a mulher é inferior ao homem, de que o homem é a “cabeça da mulher” e, por isso, deve ser submissa a ele.
Em março, durante a semana da Mulher, pude ouvir uma emocionante palestra de uma freira da congregação salesiana, de Salinópolis-Pará. Entre suas palavras, ela mencionou o famoso mito de criação da humanidade: a história de Adão e Eva, o qual é muito utilizado para justificar a prevalência do homem sobre a mulher. A irmã dizia que Eva saiu da costela de Adão, porque ela nasceu para caminhar lado a lado com ele e não à frente ou atrás, acima ou abaixo. Se assim não o fosse, ela deveria ter sido retirada de outra parte. Essas palavras soaram como uma canção pacificadora em meu espírito.
Quero terminar esse meu desabafo e reflexão, reiterando os meus sentimentos em relação à esposa do sogro de minha irmã, que foi a companheira leal de sua mocidade até os últimos dias de sua vida. Assim como ele o foi dela. Caminharam lado a lado até o fim. Agora, ela terá que continuar sem ele. Mas não sozinha, pois, felizmente, meu cunhado é o espelho do pai. Sei que ele o honrará e à sua mãe. Peço a Deus para confortá-la e dar-lhe força. Espero fervorosamente que meu marido e eu possamos caminhar tão (ou até mais) longe quanto eles.
Em: 17.05.2020