Dona Roxa
 
     Era uma mulher simpática de voz estridente, riso farto e muito querida na vizinhança. Me ocorreu agora que nunca soube qual era o seu nome. Desde que a conheci a chamavam assim. Acredito que o apelido “Roxa” veio pelo seu tom de pele preto arroxeado. Na Bahia, com uma grande parte da população de pretos, não era uma ofensa. “Meu preto”, “Minha preta” são, inclusive, uma forma de tratamento por lá. Como costumava visitar conhecidos dos meus pais com frequência nas férias, posso afirmar que é um pensamento real.
     Dona Roxa tinha nove filhos e morava numa casa de dois cômodos num beco com cerca de oito casas, mais ou menos iguais, de cada lado e com uma torneira comunitária no fundo. Todas as casas tinham um tonel como reservatório de água na sua frente, que era abastecido com baldes da água retirada naquela torneira. O beco ficava exatamente ao lado da casa que nos hospedava, que tinha frente para a rua e uma porta lateral com acesso por ele. Por isso podíamos acompanhar a vida daquela comunidade de vizinhos parceiros em tudo. O conjunto de casas do beco era uma disparidade enorme com o restante das casas da rua. Talvez o dono do terreno tenha pensado em lucrar construindo casas pequenas para vender ou alugar aos de baixa renda, talvez tenha sido o contrário e pensado em ajudar a essas mesmas pessoas. Tenho uma vaga lembrança do marido dela, nada além do fato de estar sempre bem vestido, “bem alinhado”, como ela orgulhosamente dizia. Apesar das dificuldades por morarem tantos num ambiente tão pequeno, percebia-se uma união enorme na família e, exceto pela brincadeira da matriarca em alguns momentos quando chegava na sua porta e dizia bem alto “Aff! Que desabafo!”, jamais a ouvi se queixando da vida que levava.
     Os filhos da Dona Roxa formavam uma “escadinha” e os que estavam em idade escolar, na escola estavam. Até quando tive notícia deles, os três mais velhos chegaram à universidade. Mas o motivo desta história é falar sobre o Leo, um dos meninos lá pelos seus oito anos. Todos os outros filhos tinham nomes iniciados com a letra C, exceto ele. Fiquei um tempo tentando imaginar um nome de menino com a letra C que permitisse o apelido Leo, mas não encontrei nenhum. Ele era o “Leo” e nem lembro se era abreviatura de Leonardo. O moleque era “levado da breca”. Vivia aprontando e não era raro ouvirmos o grito estridente de Dona Roxa a chamá-lo: Leeeeo! Ô, Leeeeo! E o pimentinha não respondia. Sabe-se lá onde estava e o que estava aprontando. Magricelo, o menino escalava e pulava o muro da casa onde ficávamos, atravessava o jardim correndo e já alcançava a casa ao lado para pegar “pitanga no pé” no jardim vizinho. Também se embrenhava no meio das diversas plantas e árvores ornamentais na casa do lado contrário e, só de birra, ficava escondido. Isso quando não estava apertando campainhas de outras casas ou tentando entrar nos toneis de água dos vizinhos, para exaspero da mãe. Quando ela conseguia pegá-lo, o cinto corria solto e a cantilena era a mesma de sempre: Ai, mãinha, ai, mãinha! Não vou fazer de novo, não! Depois do castigo, lá estava Leo novamente a aprontar. E lembro da última vez em que estive lá. Dona Roxa tinha aprimorado o grito de guerra quando buscava o pestinha. O primeiro chamado era calmo e seguia num crescendo estridente: Leeo! Ô, Leeo! Pausa. Leeeeo! Ô, Leeeeo! Pausa maior. Leeeeeeo! Ô, Leeeeeo! Pausa maior e o "grand finale": Ô, diaaaboo! Sabendo que se não aparecesse logo "o couro ia comer", o danado surgia como num passe de mágica: Tô aqui, mãinha!




Post Scriptum: Esta crônica não tem nenhuma conotação racista ou preconceituosa. Os eventos aqui narrados são lembranças de fatos reais e pessoas reais, com a permitida licença poética na sua criação.
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 16/05/2020
Reeditado em 21/07/2020
Código do texto: T6949291
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