Mundo Lockdown

Em meio às notícias pandêmicas do coronavírus, leio com natural espanto uma que foge ao tema. Deu-se no Reino Unido. Um foragido da justiça ficou insatisfeito com a foto dele que a polícia publicou nas redes sociais/imprensa e sugeriu que os policiais trocassem a foto por outra em que ele acreditava estar mais apresentável, bonito, reconhecível.

Não comunicou à polícia inocência nem pediu uma cela individual, com tevê a cabo e uma Brastemp. Fez apenas um pedido modesto e tão em moda ultimamente: esse de querer sair bem na foto.

Quase todos temos conhecidos —leve ou totalmente feios, conforme o padrão nacional— que, quando vão tirar foto, realizam inúmeras piruetas: alargam o contido sorriso, a posição do olhar, a longitude do queixo em relação à verticalidade do vento norte. Todo esse malabarismo geralmente dá resultado, para alegria e contentamento dos fora do padrão nacional de beleza, fazendo com que nas fotografias apareçam parcialmente bonitos.

Se é verdade que as aparências enganam, nomes enganam muito mais. Diga aí se você já viu algum Judas do bem? Eu, nunca. Até ontem. Li a notícia com natural espanto. Aconteceu no Brasil. Um pai compareceu a um cartório para registrar o filho, mas com um nome incomum: Judas. A moça do cartório lhe explicou que não poderia registrar o filho com esse nome, que Judas é um nome suscetível de expor ao ridículo o seu portador. O pai do Judas discordou; disse que tem o Judas do bem e o do mal; que seu filho seria o Judas do bem. Ademais, chamou a lógica: disse que se temos Messias que não faz milagre, por que não Judas do bem? A moça do cartório pensou, logo desistiu —e Judas assim se fez oficialmente.

E não é tudo: estamos atualizando. Nas Filipanas, leio que uma menina recebeu o nome de Covid Marie, enquanto um garoto agora se chama Covid Bryant. Mais à frente, a reportagem revela que, na Ásia, um casal de gêmeos foi nomeado Covid e Corona. Do lado de cá do hemisfério, penso comigo: "Ora, não está na hora de nos atualizarmos? De nos aproximarmos dos nomes progressistas/asiáticos/europeus/americanizados/"forever" do mundo golden share?" Por que não trocamos os desatualizados nomes dos futuros Josés, Marias, Antônios por nomes modernos, tal qual nas Filipinas, na Ásia, nos EUA?

Do lado de cá do hemisfério, fico meio decepcionado com nosso progresso. Aqui, no Brasil, ainda andamos a batizar nossos gêmeos com nomes desatualizados, tais quais Cosme e Damião, Maria e José, Cícero e Caetano, Bernardo e Benício, dentre outras rimas. Ainda estamos na fase do judas do bem. Como assim queremos ser primeiro mudo com nomes do terceiro? Precisamos nos atualizar.

Penso que Maria Eduarda, minha vizinha de imaginação, gostaria de ter um desses nomes progressistas/asiáticos/europeus/americanizados/"forever" do mundo golden share. Mas não lhe foi dado direito de escolha —e ficará, até que a morte a separe de seu nome de terceiro mundo, Maria Eduarda. Sem piruetas nem malabarismo, mãos no queixo, olhar na imaginação, ouvidos próximos do coração; conservar-te assim, Maria Eduarda, em nosso mundo terceiro mundo, longe de Lockdown & golden share.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 16/05/2020
Reeditado em 20/05/2020
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