Pauta para o jornal da televisão

Meu trabalho consiste em criar a pauta diária do noticiário televisivo. Significa que escrevo notícias antes de entrarem no ar. Faço isso há mais de dez anos. Confesso que estou cansado dos crimes recorrentes oriundos da miséria ou da patologia do poder. Esse sangue escorrido graças a simples sensação de superioridade sobre a vítima numa sociedade de consumo. Também estou extenuado das guerras motivadas pelas religiões ou expansão territorial fruto da boa-fé explorada pela persuasão. Das mortes no trânsito com seus quarenta milhões de carros em número crescente, enfrentando estradas esburacadas que se estendem em produção decrescente, provocando mortes tremendas em altíssima velocidade. Farto das informações que afasto para divulgar a incapacidade de ir mais longe, mais fundo nas informações. Sei que estamos habitando puramente o aspecto das coisas e nasce em mim a vontade arrasadora de confessar a verdade além da simples plástica informativa. Pego um café e sigo até a mesa do Editor. Mostro-lhe o novo tópico da notícia. Sei que ficará furioso e mesmo assim prossigo para tirar a febre do seu temperamento. Ele pergunta:

- Escreveu sobre drogas hoje, Profeta?

Ele me chama de Profeta como Getúlio chamava o Samuel.

- Claro. Está aqui, veja: “Drogas!" Preste atenção! Para servir a multidão de drogados traficantes enfrentam a polícia. Está bem assim?

Ele dá um murro na mesa virando o café.

- Quer ir preso? Quem está interessado em drogado? O enfoque é o dinheiro, só o dinheiro, não há questão de saúde nesse tema. A saúde pública não comporta essa questão, portanto ela é criminal, criminal! Compreendeu? Danem-se os doentes e a multidão de necessitados de prazer fácil que andam pela rua atrás de um sorriso tribal. Danem-se! O dinheiro desviado para tal finalidade é o que importa... Dinheiro.

- Calma! Estava só brincando. O estado santificado dá o direito de cuidar dos anjos para que não se sintam no céu tão fácil sem rasgar a mão na pedra. Ele então riu dizendo: "nem depois de rasgar!". Sigo lendo:Sobre governos: O espetáculo da corrupção nas esferas de alta classe. Ponto. Nada disso entrará no ar. (No ar não há tempo para explicações, se quer aprofundar algum tema que leiam). Sobre ciência haverá um ou dois enfoques rápidos. Na educação apenas o trivial sobre a ignorância crescente do mundo entre tanta informação pasteurizada. Na pasta de economia o tema é farto. Sempre os êxitos do pensamento positivo da produtividade, portanto não afetará quem está na praça chorando, nem os endividados e nem os falidos. Os perdidos em meio aos detritos do salário, enfraquecidos pela produção, estes serão considerados como "aqueles que passam" inevitavelmente. Esquecidos até que se tornem explosivos contra alguém bem vestido da família numa rua deserta e sem número.

Já na editoria de esportes há grande agitação de jornalistas e entusiastas do campeonato, portanto vamos salvar a aparência da sociedade fraca de recursos com o grande atletismo global. O atletismo da razão prática. Haverá gols e muitos comentários. É assim todos os dias e nos sentimos protegidos pelos arautos que ficam melhores nas moças bonitas que nos dão a entender tudo graças às rápidas pinceladas da voz sedosa. Em algum país do mundo pelos menos elas mostram os seios após o desabafo das questões sérias. Os seios da vida em que formamos tanta miséria e onde há tanta esperança. E como apreciamos mais a violência do que os prazeres humanos... Passo tudo a limpo. É o meu trabalho revelar o noticiário ao noticiário. O noticiário implacável como números e depois seguir bem alimentado para casa e em silêncio.