Adultificação
Eu observava minha tia e junto a ela todos os seus intrigantes costumes, fosse das coisas mais simples as mais incompreensíveis, tudo era motivo de questionamentos para mim. Dentre tudo nela, sem sombra de dúvidas, dormir completamente enrolada era o que me embasbacava na época. Não sentia calor? Eu me perguntava. Como ela faz para não desenrolar durante o sono? Eu me perguntava também. E, claro, eu também a perguntava: tia, como que a senhora consegue dormir enrolada até a cabeça? "Consigo conseguindo", era sua resposta — sem demais explicações.
Esta dúvida me assombrou por anos de minha infância, pois se me lembro bem, naquela época eu não concebia a ideia de dormir enrolado, acho até que nem lençol eu usava. Apenas deitava e dormia. A gente quando criança não se preocupa muito com essas coisas, somos meio desleixados por natureza, ou talvez um pouco mais simples, mais autênticos. E eu perguntava todo tipo de coisa à minha tia, coisas bobas mesmo, sabe? Coisas como: tia, como que a senhora faz pra acordar sempre no mesmo horário? A resposta, claro, era sempre a mais breve possível: "faço fazendo". Eu amava minha tia, amava lhe fazer perguntas e amava suas respostas que não respondiam nada.
E eu não sei quando tudo começou, porém quanto mais fui crescendo mais fui gostando de um lençol. Passei a usá-lo com frequência, até ele ganhar espaço cativo em minha cama. Antes eu apenas me enrolava da cintura pra baixo. Com o passar dos anos, até o pescoço. E agora até a cabeça. E lá estava eu nesta manhã, completamente escondido do mundo, debaixo de um lençol, ouvindo tudo à minha volta. Lembrei da minha tia. É curioso como a gente vai criando essas manias depois de velho, né? Digo isso porque já não me imagino dormir sem um lençol, me sentiria desprotegido sem ele, vulnerável até na hora de dormir...
Outro fato curioso é que hoje eu também sou tio, e ela me faz as perguntas mais variadas possíveis, algumas fazem algum sentido, outras nem tanto, pelo menos não para mim. E eu temo, eu temo todos os dias, temo que ela fique cada vez mais esperta e me fazer a pergunta que nenhum adulto me faz. Embora talvez não me façam por serem espertos demais. Eu temo o dia em que ela virá em minha direção, parará em minha frente e após segundos me encarando perguntará: tio, como você consegue viver os seus dias sendo extremamente infeliz e não ter tentado ainda se matar? A resposta, essa não poderá ser outra: "consigo conseguindo" — sem demais explicações.