QUEM DERA

O sol está quase se pondo. Que paisagem magnífica! Há quanto tempo não venho aqui? Não sei ao certo, quem sabe já estou velha e com a memória desgastada.

O mar sempre me trouxe uma misteriosidade universal, em suas ondas enxergo a inconstância de minha obscuridade interior e sinto falta do que não fui e do que já fui, mas, atualmente, não sou mais. Cada grão de areia que compõe este cenário natural e foge de minhas mãos me atormenta.

Mas, caro leitor, estas angústias existenciais e esta pobre poesia escrita não surgiram do breu da vacuidade. Nesta manhã de abril enquanto estava inerte em um semáforo ouvindo as notícias do dia a caminho do trabalho, um jovem se aproximou do meu carro e me ofereceu algumas revistas. Não vi muito bem do que se tratava, apenas o dei uns trocados e recebi uma revista qualquer com vários pacotinhos. Ao colocar a revista no banco do passageiro junto com os pacotinhos reconheci de imediato àquela capa, aquelas figuras e aqueles pacotinhos... Que nostalgia! O meu dia correu vagarosamente, de quantas coisas lembrei. Recordei de momentos que eu não lembrava que recordava.

Quando pré-adolescente aquela mesma revistinha era um de meus divertimentos, dos meus passatempos favoritos. Em cada pacotinho havia quatro figurinhas que serviam para colar na revistinha, e em cada figurinha havia uma característica do amor. Quanta ingenuidade, talvez até perda de tempo! Naquela época tudo parecia tão mais fácil, em que parte do tempo eu me perdi? Buscar-me.. ah, gostaria! Mas o que perdi na verdade nunca foi meu.

Hoje, sentada nestes grãos de areia, contemplando o pôr-do-sol e com a brisa a me banhar de um sentimento não decifrável, reflito do agora para trás, visando um futuro incerto como eu. Penso que aquelas figurinhas me ensinaram a entender que o amor em minha vida sempre foi passageiro, ele nunca quis fixar raízes em minhas terras secas. É possível que aquelas figurinhas tenham me imposto um ideal de amor irreal, mas o fato curioso é que o vivi ilusoriamente durante alguns momentos. Assim sendo, pode ser apenas o destino que me reservou a solidão. Cruel destino!

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”, assim disse Machado de assim em algum de seus livros, não me recordo agora em qual. Não o julgo, mas também não generalizo. Não sei se todos são miseráveis, não me importa saber. Prefiro pensar que o cosmos não desenhou este acontecimento em minha existência, e sou grata por isso, pois a tristeza, o vazio e sono em vida bastam a mim. Que cada um assuma a sua miséria individualmente, assim como eu o fiz. Mas, não nego.. não nego que senti beijos que me deram a sensação da inexistência de qualquer frio; não nego a vivência dos amores banais e dos amores complexos; não nego a recordação instantânea das noites em claro vivendo intensamente o que são apenas lembranças, agora; não nego a falta que sinto da minha esperança no amor.

Gostaria de ainda acreditar que o amor é.. aquelas diversas ilusões que diziam as figurinhas, pois ter a consciência da reflexão é exaustivo. Quem dera o sinal abrisse antes do jovem rapaz chegar a meu carro. Quem dera eu não comprasse a revistinha com figurinhas que me lembraram o que não tenho e o que não mais sou. Quem dera..

O sol já se foi, a lua já ilumina e o “quem dera” continua.. melhor ir embora!

Andresa de Oliveira
Enviado por Andresa de Oliveira em 12/05/2020
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