Draminha Existencial
Uma voz no fundo da minha consciência todos os dias me martela inconvenientemente com uma pergunta: Quem sou eu? Esquivo-me dessa intrigante pergunta num gesto desesperado:
"Não sou o criador do céu e da terra. E provavelmente não subirei aos céus. Não sou eu quem vigia teu sono ao cair da noite, nem ao raiar do dia. Afinal de contas, não sou teu anjo da guarda, muito embora eu possa ser teu ombro amigo ou a principal causa da tua dor de cabeça. Não sou Cacilda Becker. Nem sou Brigitte Bardot. Não sou Manuel Bandeira, mas comungo com ele o desejo de ir me embora pra Pasárgada: lá terei a mulher que eu quero na cama que escolherei.
Não sou o Mário. E muito menos aquele que te comeu atrás do armário. Não sou o Coelhinho da Páscoa, nem o Saci-Pererê, nem o Lobo-Mau, nem o Papai Noel: eles não existem. Acredite: eu também não queria acreditar quando me disseram. Não sou o descobridor da América. Não sou o primeiro homem a pisar na lua – aliás – nem eu e nem ninguém: nem Neil Armstrong, nem São Jorge e nem Dragão nenhum. Isso eu sei, embora minha avó seja uma fervorosa devota de São Jorge. Não nasci em berço de ouro e nem em manjedoura de madeira. Não brotei da sementinha, nem fui trazido por cegonha nenhuma: embora eu acreditasse com o mesmo fervor com que minha avó acredita em São Jorge. Não nasci a dez mil anos atrás. Não sou o percussor da Bossa Nova. Não aprendi balé aos seis anos de idade.
Não sou eu o Aurélio Buarque de Holanda. Não sou o Miguel de Cervantes. Não me chamo Fiódor Dostoievski: nunca cataloguei verbetes num dicionário, nunca escrevi o Dom Quixote de la Mancha, nem os Irmãos Karamazov. Não fui eu – infelizmente – quem formulou a Teoria da Relatividade, nem o gráfico e nem o cogito cartesiano: penso, logo existo! Nunca tive uma sacada genial na minha vida e muito provavelmente não a terei nem aqui e nem na próxima encarnação.
Não sou eu o fundador do Materialismo Dialético. Não fui eu quem ergueu e nem foi eu quem derrubou o Muro de Berlim. Não fui eu quem disse com os olhos cheios de espanto e contentamento: a terra é azul. Não fui eu quem assinou a Lei Áurea. Não sou eu a bala que matou John Kennedy, embora queira ser a bala que vai matar George Bush. Não sou eu quem descobriu o Brasil, nem foi o Pedro Álvares Cabral: isso é história de tia da 5ª série. Não fui eu quem tocou fogo em Roma. Eu juro! Foi o Nero.
Não sou aquele que te amou entre gritos de paz, em meio a sexo, drogas e rock and roll no Woodstock, em 69: até porque nem eu e nem provavelmente você estávamos lá nesse dia. Eu não fui o responsável pela quebra da Bolsa de Nova York: mas eu juro, que se eu pudesse quebrá-la de novo eu quebrava. Não sou o Black Kamen Rider e nem o Ninja Jiraya, embora quisesse sê-los na infância. Não sou o Silvio Santos, nem o Faustão e nem o Datena, e todo dia eu agradeço a Deus por não sê-los. Não sou o Mahatma Gandhi, nem Jesus Cristo e nem o Luther King, embora eu me esforce todos os dias para ser ao menos um grãozinho do que eles foram.
Não sou eu quem disse que a terra é redonda: não fui eu quem pagou esse mico. Não fui eu quem acordou e se viu metamorfoseado numa asquerosa barata de pernas pro ar. Graças a Deus! Não sou eu quem comeu a barata, foi a G.H da Clarisse Lispector. Não sou eu quem pousou na tua sopa, foi a mosca do Raul Seixas. Não fui eu quem cagou o sonho da revolução socialista num ventilador em movimento, foi a anta do Stálin. Não fui eu quem confundiu gigantes com moinhos de vento, foi o louco do Dom Quixote. E se acaso duvida da minha palavra, pode perguntar pro Pança que ele te responde.
Não fui eu quem matou o Vargas. Eu não sou o Getúlio Vargas. Eu não saí dessa vida para entrar na história. Até porque, também, não fui eu quem meteu o dedo no teu bolo de aniversário: quem meteu não sei. Nem sei se meteram o dedo no teu bolo de aniversário. Nem sei se no teu aniversário tinha bolo. Nem sei se teve gente no teu aniversário. Nem sei se tu teve aniversário. Pra falar a verdade: nem sei quem é você. Na real, a única coisa que sei é que nada sei. E isso não fui eu quem disse: quem disse isso foi um tal de Sócrates, um camarada que já morreu há muito tempo. E pra não repeti-lo: só sei que quem escreveu esse monte de conversa fiada fui eu. E ponto final".
Mas perplexo, apago o ponto final e pergunto à minha consciência:
"Até quando serei um estranho dentro de mim?"