O TEMPORAL NO RIO AMAZONAS
TEMPORAL NO RIO AMAZONAS.
Autor: Moyses Laredo
No dia do temporal lembro-me bem, porque eu estava bem atrás do cabôco do leme, o barco era dos pequenos, não tinha taifero, só um ajudante. Nesse dia, já em seu retorno para Manaus, a embarcação carregada de passageiros e carga, acho até que além do seu limite, porque a linha d’água estava quase rente com a borda livre, o porão abarrotado de leite e outras mercadorias que elevavam a carga além do suportado pela frágil embarcação. No convés, todos os lugares tomados, passageiros sentados pareciam estar em alguma igreja. Desatracamos já com as ondas lambendo as beiradas do barco, embora parado com o motor ligado, respingava água do banzeiro para dentro.
Assim mesmo, deram a ordem de partida, caracterizado pelos toques contínuos da campainha (igual de bicicleta), com isso, o motorzinho acelerou, e lentamente se desapegou do barranco, toldou as águas da popa de tão próximo que estava, ainda com as ondas castigando o casco, se afastou do beiradão, mas, permaneceu em marcha lenta pela ilharga (lado, beirada), o caboco do leme parecia não querer atravessar, tinha dúvidas, continuava navegando rente ao paredão. Eu ficava distraído olhando o banzeiro chegar nas canoinhas atracadas no caminho. O caboco do leme esperava talvez, aproveitar uma brecha no tempo para guinar à bombordo (estibordo em Portugal) em direção ao meio do rio, onde a correnteza é menor e facilitava a navegação, mesmo porque tinha que atravessar, não tinha outro jeito de chegar à Manaus.
Como já havia viajado algumas vezes, conhecia esses procedimentos, fiquei quieto, mais do meu lado, vi que na linha do horizonte se formava um temporal, dava pra notar quando o barco subia na onda, se via por lá tudo escuro, o motorzinho tipo “totó” como assim era chamado, pelo barulho que fazia – “stchu, stchu, stchu, stchu...” (som aspirado) a embarcação ainda estava no outro lado do Rio Amazonas, se quisesse chegar em Manaus, teria que atravessar o grande Rio. O “cabôco do leme” se mantinha pacientemente na ilharga ainda a espera de uma oportunidade do tempo abrir para fazer a travessia, quando encostou ao seu lado, um senhor bem vestido paletó branco, chapéu de palha, sapatos reluzentes, gomalina no cabelo, parecia ser o dono da pequena embarcação, olhava pra frente, depois virava o olhar para o “meião” (meio do rio), gesticulando muito, falando com o caboco comandante, quando resolveu aumentar o volume de voz, querendo que todos o ouvisse, - “E aí, cabôco, o que tu achas? dá pra atravessar?”
O cabôco logo respondeu, sem mover os lábios, parecia o ventríloquo do peteleco: - “Dá não, sinhô!” O dono retrucou e insistiu, - “Como não dá rapaz, olha só, espalmando as mãos à frente, abrindo os dois braços, já se mostrava impaciente com o marasmo do cabôco, assim ensinando: - “Desse lado, está calmo até está abrindo o tempo, desse outro, nem se vê mais nada? dá ou não dá?”
O cabôco impávido, sem alterar um músculo da face, sempre olhando para frente, repetiu o que já tinha dito antes, dessa vez, abanou a cabeça bem devagar, no compasso das sílabas repetiu: - “Dá não, sinhô!!”
O dono da embarcação disputando conhecimento com o cabôco, agora já gritando falou bem alto pra todo mundo ouvir:
- “Pode ir que eu garanto, marrapá, me criei foi neste rio, conheço tudo!!”
Dada a ordem, o cabôco comandante, rodou o timão várias vezes à bombordo parecia que o barco não queria obedecer, o leme tinha mais folga que funcionário público, mais acabou aceitando o comando e girou noventa graus lentamente, cortou as primeiras ondas, e “assulerô” (acelerou) para a direção, apontada pelo patrão, rumo das águas amareladas e revoltas, pra cima daquelas nuvens esvoaçada rente ao rio, que apareciam sobre as águas, na visão de onde estávamos, lá bem no meião do Rio Amazonas, em pleno temporal.
Depois de algum tempo navegando, o barquinho de baixa potência, carregado, lutando com dificuldade para atravessar as ondas baixas, percebeu-se o erro fatal da decisão. De princípio um banzeirinho miúdo (ondas pequenas) por estar carregado balançava pouco, cortava de frente as ondas, até ai modo normal de viagem, quanto mais o tempo passava começou a surgir aquela “nuvem de água” e já bem perto, as coisas começaram a ficar mais complicadas, balançava muito e agora, não só de frente, mas dos lados também, pra piorar, golfadas de água passaram a varrer o convés de um lado para o outro, como se alguém muito forte baldeasse o barco. O rio estava dando um recado.
O vento forte que uivava, deixava o rosto dos passageiros respingadas, os plásticos azuis enrolados das laterais, chamados de corta ventos, foram descidos apressadamente pelo único marinheiro presente, (disse “apressadamente”?) acrescentando mais angustia aos passageiros fechando tudo, ninguém via mais quase nada, algumas frestas quem tivesse ao lado do comandante (o cabôco), as águas agora passaram a varrer o convés, balanço de todos os lados, barulho do choque das ondas, ventos aumentando, sinais do motor rateando. Os passageiros que se sentavam em banquinhos inteiriços de madeira, do tipo de igrejas, permaneciam com os pés levantados, para não se molharem, suspenderam também seus pertences que normalmente são colocados no chão próximos a eles.
Os gritos e choros começaram a contagiar a todos, as crianças gritando desesperadamente, se ouviam gritos de pavor, um pouco mais à frente, ninguém conseguia ver mais nada, como acontece com os temporais em terra, a visibilidade diminui para zero e escurece tudo o pouco que se via. Imagine-se um barco cheio de passageiros, carregado nos porões com “buiões” (botijões galvanizados, fechados com tampa rosqueada na boca, com capacidade para 60 litros) cheios de leite fresco e mercadorias diversas, recolhidas recentemente nos portos por onde parava, em que se podia ouvir de lá do convés, o tilintar dos vasilhames no porão do barco, batendo uns contra os outros, misturado com o ronco do motorzinho, para piorar, começou a ratear mesmo. Estava formado o cenário de pânico, acho que nem Steven Spielberg, pensaria num roteiro melhor.
Embora a viagem seguisse agora só pelo rumo, sem visibilidade nenhuma, não tinha mais como voltar, passou do “Ponto Sem Retorno” como dizem na aviação, as águas já entrando pelos lados sem cerimônia, varrendo o convés por várias vezes, com as ondas batendo cada vez mais forte e mais altas pelos lados, o barquinho já navegava quase ao sabor das ondas, o pequeno e fraco motor não era páreo para a força dos ventos e da grande correnteza, o pânico já instalado, cada um se agarrando com o seu Santo de estimação, alguns já em pleno desespero na maioria mulheres com crianças, choravam e gritavam, “ AI JESUS, ME ACUDA! NÓIS VAI AFUNDÁ!, NÓIS VAI AFUNDÁ!!! ACUDA NÓIS”.
A essa altura, cacei com os olhos o meu irmão que me acompanhava nessa viagem, ele estava agarrado no meu braço, começou a franzir a cara e disse...- “E agora mano?” Cochichei no seu ouvido, por causa do tumulto, e pedi-lhe que ficasse calmo, pois que eu sabia como a gente ia se salvar e não se preocupe com nada, disse-lhe também para ficarmos juntos, apontando para aquelas “boias pretas”, que quando o barco afundasse a gente se segurava nelas e se salvaria. Isso bastou para ele ficar calmo e passamos a nos segurar melhor naquele balanço, o pior é que eu também acreditava que aquilo fossem boias, na verdade eram apenas pneus velhos para proteger a embarcação de choques quando ancoradas nos portos.
Durante o sufoco também fixava o olhar no dono da embarcação, queria ver o que ele faria, afinal fora ele quem nos meteu naquela fria, no entanto, ele estava bem agarradinho no pau de sustentação do toldo, todo molhado, camisa aberta, fazia uma cara de desespero, cabelo “assaranhado”, o bonito chapéu havia voado longe, já não se parecia em nada com o elegante e exibido senhor, dono do pedaço, sua expressão de sofrimento, pavor, medo, olhava a todos com as sobrancelhas esticadas e boca aberta, certamente ele não sabia nadar, embora “tenha se criado naquele rio” como dissera. Também na mesma visada, eu olhava o cabôco comandante, há! ele não, ele permanecia do mesmo jeito, nem tinha mudado o lado da bunda na posição da sentada no banco, nenhuma expressão no rosto, só o vento que abanava alguns fios do seu cabelo rijo que nem piaçava, mãos firme no timão, com certeza já havia calculado que daquela distância se salvaria nadando, estava acostumado, pra ele era fácil, então pra que se apavorar? Se foi o dono que mandou!
Passados alguns instantes nessa situação nada mudou, apenas piorava, o dono da embarcação tomou uma atitude, mandou o pessoal de bordo, aliviar o peso da embarcação, retirando às pressas dos porões, as cargas de produtos regionais e os buiões pesados de leite, despejando tudo no Rio. De onde eu estava, pude observar que essa operação deixava um rastro de coisas boiando e uma faixa branca e leitosa por algum tempo na superfície do Rio revolto, depois, a cor amarelada do Amazonas engolia o branco espumoso do leite, só eu contei uns 30 buiões, perto de 1.800 kg de carga a menos, coisa de aproximadamente umas 30 pessoas comparativamente, fora o peso das mercadorias que jogou junto com os buiões.
Percebemos todos que depois disso melhorou muito o desempenho do barquinho, ele até que enfrentava melhor as ondas, antes, quando entrava de frente, pesado, eu me entortava todo, como a gente faz quando quer que a bola do boliche faça curva para acertar os pinos, para que ele levantasse a proa, dessa vez não! Parecia mais lépido, a proa surgia logo.
O desespero ainda durou mais meia hora, que pareceram muitas na minha cabeça, até que tudo passou repentinamente, quase do mesmo jeito como havia começado, acho que o vento mudou de direção e levou as ondas consigo, o barco pode enfim navegar com mais segurança, embora a chuva continuasse, era um mal menor, dava para suportar, já não havia o risco de afundar, parou o choro das mulheres, só ficou ainda os das crianças.
Depois do sufoco, veio o alvoroço dos passageiros e tripulantes procurando suas bagagens que se soltaram, arrumando suas coisas que tinham se espalhado pelo convés, depois, começaram as esculhambações contra o dono do barco.
Olhando a cara dele todo descabelado sem o bonito chapéu, camisa aberta no peito, olhar de espanto, todo molhado, percebia-se em sua expressão o desespero de ter perdido toda sua carga e o quanto chegou perto de afundar o barco de seu sustento, estava arrependido por ter sido arrogante e teimado com a sabedoria milenar do cabôco Amazônida, que conhecia muito bem do que falava.
O caboco comandante, do jeito que estava, ficou! apenas se virava para olhar de vez em quando, as coisas dos passageiros espalhadas no chão e aqui e acolá respondia alguma pergunta de alguém que de tão baixo, de onde eu estava, não escutava nada.