A VOLTA DA JUREMA

1. A VOLTA DA JUREMA

O DESESPERO DO CHICO BODÓ

Autor: Moyses Laredo

Chico Bodó como é conhecido na comunidade do Laço Frouxo, é amasiado com Marialva-de-Tenório, mais conhecida como Jurema, mulher das ancas largas, peso pesado, muito dócil e trabalhadeira, mas de um gênio que só vendo, e nem caia na besteira de enfezá-la, faz sempre o que lhe dá na telha, eles ainda não tinham filhos, estavam recém ajuntados, o Chico a conheceu numa quermesse de Sta. Luzia na paróquia de Santana, não precisou falar mais de dez palavras, sendo cinco repetidas, para abater o coração da Jurema, de lá mesmo, ela já embarcou na canoa “mais” o Chico, dizem que não se despediu de ninguém da sua família, foram morar no casebre com o pai dele, na beiradinha do rio Nhamundá, um afluente do Rio Amazonas. O Chico, muito arteiro fez um puxadinho nos fundos da casa do seu velho pai, fez um piso de paxiúba e cobriu com palha seca de ouricuri, telhado tipo rabo de jacu, só prum lado, e lá, ataram suas redes e pronto, nem parede tinha, igual a música do Toquinho “Uma casa muito engraçada” assim completada a “decoração” se passaram pra dentro, mas para fazer saliências, tinham que sair pra mata, diziam que iam pegar nhambu de arapuca, conversa fiada do Chico, às vezes, até que traziam umas nhambus mesmo, mas só pra não dá na vista do seu pai, coisa que, como se o velho piroqueiro, não tivesse “urubuservado” eles.

Viviam da caça e pesca, passavam o dia nessa mansidão de vida, o Chico, às vezes, vendia um pirarucu mais acima, na comunidade do Vento Oco e com os trocados, tomava todas, quando voltava pra casa, bêbado, liso e brabo, e por qualquer motivo, enchia a pobre da Jurema de porrada. A coitada, sempre que lavava as panelas no jirau da casa do lado do sogro, prometia pra si mesma, baixinho entre os dentes que ainda lhes restava, que esta seria a última surra que levava dele, - Na próxima vez que ele levantar o remo curto para me bater, disque, vou pra bem longe, que ele num vai nem ver o meu rastro, “vou se embrenha no mato”, saindo ali por trás da coivara, - como foi ela mesma que fez, sabia as passagens. Depois, era só atravessar o chavascal, e pronto, chispava no rumo de cima, pra onde mesmo, ela nem sabia ainda onde ia dá, mas é certo que um dia largava dele. Conversando consigo mesma, as panelas velhas encardidas pelo fogo de lenha, ficavam areadas brilhando, de tanta raiva de esfregar, ali ela pensava que era o pescoço do Chico.

Acontece que, quando o Chico Bodó, está “bom”, era uma santa criatura, muito carinhoso com ela, fazia sempre suas vontades, é princesa pra cá, princesa pra lá, sabe até do que ela mais gostava, na sua lista de preferências, está o tatu peba, assado direto no braseiro do fogão, sem tirar o bucho, e sempre que pode (seu tempo é curto demais, disque!) ele desentoca um pra ela comer assado no pelo, as vezes fazia tipo biaribi (método indígena de cozinhar caça ou pescado envolvido em folhas verdes de bananeira que se enterra numa cova, por cima da qual, se acende um fogo) ela babava só de ouvir essas promessas do Chico, e assim ia ficando, e de repente, esquecia de tudo, até os beiços desinchar ou, à próxima surra.

Outra coisa que também é louca pra comer é por um muquinhado (assado de peixe na folha da bananeira) de tambuatá com banana pacovan frita, peixe muito comum nos lodaçais de perto da casa. Quanto a esse peixe, dizem os nativos, que ele surge do nada nos açudes, uns aventuram até a dizer que eles vêm em ovas pregados nas patas das aves, outros, caem das chuvas, e alguns, nem imaginam com chegam. O fato é que logo depois que o açude se enche já se percebe tambuatás nadando, de fato é intrigante. Segundo estudiosos do INPA eles simplesmente se arrastam pelo solo seco, em busca de lagoas para se reproduzirem, quando a concorrência onde estão, já não suporta mais, e machos alfas agressivos os expulsam. Mas sim, se só saem machos alfas, como eles se reproduzem?...Ah purrrra, deixa pra lá, o pessoal do INPA que resolva essa parada. - Mas sim, (como se continua uma conversa pelas bandas de lá) a vida do casal sempre se alternava em surras, e agrados, igual a música do Zezé de Camargo, Tapas e Beijos.

Mas num belo dia, por lá não tem sábado, domingo e feriados, o Chico se levantou da rede um pouco mais tarde, de ressaca, não se lembrava que houve na noite passada, correu pra rede da Marialva, estava “seco” por uma lapinguachada, mas tomou aquele susto, pois num é que a caboca não dormiu na sua rede?...tava “murcha”, o que houve?...será que tinha largado dele?...pensou meio surpreso ainda de sono, mas acho que não, mas-quando-já?...marrapá, essa muié deve de tá na beirada pegando mussum (É um peixe, parecido com a enguia) Ela sabe que eu gosto e é muito! - mas, e se não for isso? Ah, eu “vu” é esperar mais um pouco, mas se ela não tiver “cuidando”? Então sim, pode deixar! Hoje ela leva outra daquelas, e dessa vez vai ser com cipó tuíra, tinha muito em casa para fazer chá contra impaludismo (malária) e anemia, que deixa umas boas marcas no lombo dela, - mas que pavulagem dessa caboca, onde já se viu? dessa vez ela vai ver com que grossura de pau se escolhe pruma canoa caiçara. (de um tronco só).

Saiu dali e foi bater na rede do pai, lugar mais limpo também. Só que o velho tinha saído cedo pescar, disse no almoço de ontem, que estava dando muito peixe-rei (mapará) e era muito! É peixe de couro muito apreciado, porque não tem espinhas, o caboco gosta por não dar trabalho, é só cortar em rodelas e jogar na panela e além disso, era época de piracema os bichins estavam gordos que só, pegava-se na malhadeira facim, facim, e trazia-os no samburá (Cesto de cipó ou de taquara usado pelos pescadores para guardar iscas, malhadeira, tarrafa e o que for pescado) tudo muito simples e fácil, estava na mão, o trabalho era somente de ir na beira e jogar um ou dois lances de tarrafa e pronto, a rede vinha cheia, mas, de qualquer maneira era cansativo para eles, porque o rio ficava uns 300 metros da sua palhoça. Mas e o Chico?...o que ia fazer até eles voltarem?...sem remédio, ele voltou pra sua velha e ensebada rede de tucum, se arriou de costas, e com o pé, enganchou o dedão no veio do esteio de aquariquara e deu aquela embalada que o telhado todo acompanhou, na segunda embalada, já estava fazendo zoada com os beiços, parecia um porco peiado (corda que prende os pés dos animais), assim era o Chico Bodó, pessoa simples sem vícios, dormia muito rápido, quer dizer, sem vícios não, ele tomava umas talagadas aqui e acolá, que entortava, dizia que era remédio. O pai dele perguntou porque que dizia ser remédio, aquela garrafinha gordinha de pura cachaça (corote) que ele se atracava com ela e só largava quando via as letrinhas invertidas do fundo, - Ele dizia que o dotô do posto de vacinas, sempre passava álcool na pele do braço dele antes de aplicar injeção, uma vez perguntou meio acanhado, pra que servia isso? - O dotô lhe respondeu que desse jeito matava os bichinhos da pele dele e não deixava entrar doenças. Ah! Então era isso? Quer dizer que se a gente passar álcool mata os bichos por fora, então, se beber, mata tudo por dentro! - E era por isso que ele bebia, para matar por dentro os “micróbio”, tudo ele queria curar com cachaça.

As horas se passaram quando subitamente foi acordado pelo chamado do seu pai para dar uma mãozinha no pescado, trouxe uma enfiada de mapará dos graúdos, até demais para os três que dirá para dois. De lá onde estava meio sonolento, também, já era mais de meio dia, o coitado nem “descansou” direito, respondeu pro seu pai mal-humorado, que cuidasse de chamar a Jurema. O velho na sua calma, disse de volta – e tu sabe pelo menos pra onde é que ela foi? - De um salto, o Chico se levantou da rede, - mas quando já, e ela ainda não chegou é? - Chegou nada! - Disse o velho de cabeça baixa, tirando o bucho das maparás em cima do jirau. Vai ver o que houve com ela homi, - mas “adonde” essa diaba foi se meter? ... já passa do meio dia, o sol está no miolo da tarde. A espera foi inútil nessa tarde, a Jurema se escafedeu mesmo, sabe lá aonde ela se meteu, agora a coisa ficou preta, no dia seguinte mesma espera, nada de Jurema. O Chico ficou desolado, dizia pro seu pai, que a nossa casa sem ela, vai virar a frege (confusão, desordem) o que fazer? O velho seu pai, disse de lá, se embalando da sua rede, primeiro tu precisas saber adonde ela está e depois manda um zap-zap pra ela. - Mas será que ela vai ouvir? Sabe lá se pra onde ela foi tem zap-zap, - Manda assim mesmo homi, que se “arguém” ouvir, passa a “mensage” pra ela, como faz com os Alôs das rádios. O Chico Bodó sempre ouvinte do pai, treinou o resto do dia no seu velho celular e por fim, saiu essa mensagem:

“Estou aqui, me alembrando de você, esse “verãozão” bonito, me alembrando de você. por favor venha embora, venha. O papai tá esperando você também, ele já me aconselhou muito e falou para eu parar de bater em você, porque isso não é pra mim, não sou seu pai nem sua mãe para bater em você. Ele me disse para parar de bater em você, era pra mim falar pra você não ir embora, olhe, tem um mangará de banana pacovan te esperando, cuida que já está amarelando está bom para fazer com os cangati ovado que eu ajudei o papai a pegar, já esta manhã, cuida vem logo simbora.”

Esse apelo sincero e comovente, vindo de um coração ferido, deu resultado! Não deu nem mais dois dias e o Chico Bodó já estava pendurado pelos beiços, na Jurema, num chamego afetuoso. Desconfiada que só cachorro de índio, parecia não acreditar muito nas suas promessas, mas, na verdade, já não aguentava mais era ficar entocada na mata para passar o tempo, comeu de tudo que achava no caminho, goiaba verde, banana braba, até caxinguba, que parece uma pera selvagem entrou na dieta dela, observou que muitos animais se alimentavam dela, principalmente macaco e veado. Sabia ela de que, fruta que macaco come, gente pode comer também!... e foi experimentar comer, achou muito ácida, passou uns dois dias com um caganeira braba, não tinha mais como ficar escondida na mata, estava muito fraca e sua catinga já estava chegando perto do puxadinha que o Chico fez. Nem se importou muito com os chamegos do Chico e nem ele com a fedentina dela, queria mesmo era tomar um chá-de-qualquer-coisa e se deitar na sua rede. Nesse dia, nada de saliências, o Chico ainda escabreado, mas alegre, ficou só de butuca, vendo o jeito da sua amada esparramada na rede com as pernas toda picada de mutuca. Ele a aceitou de volta, não reclamou nada e nem perguntou onde estava esse tempo todo, não queria saber de nada, era melhor assim. O importante mesmo era que ela estava ali com ele novamente, “enchendo” o ambiente. Jurema não se levantou da rede por dois dias seguidos, só tomando sopa de peixe que o Chico lhe trazia na boca, depois disso, tudo voltou ao normal. Só as surras é que tiveram um intervalo maior, mas de vez em quando ela levava a “merenda” dela, esse Chico, não se emendava mesmo.

Molar
Enviado por Molar em 08/05/2020
Reeditado em 22/05/2023
Código do texto: T6941549
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