Crônica sobre um dia difícil

Onde está Deus, mesmo que não exista?
Quero rezar e chorar,
arrepender-me de crimes que não cometi,
gozar ser perdoado como uma carícia
não propriamente materna.
(Fernando Pessoa – Livro do Desassossego)
 
     A rua está deserta, não há transeuntes nas calçadas, nem bêbados nos bares, nem carros no sinal, nem pedintes nas marquises, nem loucos gritando, nem prostitutas nas esquinas. Até os manequins parecem mais tristes e um cachorro solitário ladra do outro lado. Por que nos faz tanta falta todo aquele burburinho, aquelas buzinas, as propagandas, o empurra-empurra, o frenesi louco de um dia que julgamos “normal”?

     Mas o que há de anormal em ficar em casa, em se aquietar um pouco, em se aliviar – mesmo que contra a vontade –, aliviar a mente de tantos compromissos. Como nos custa dar o repouso necessário a Marta e serenar ao lado de Maria, sua (nossa) irmã, descansando um pouco aos pés do Senhor, ou no colo de alguém, ou no aconchego de uma presença – antes quase despercebida, de importância esquecida.

     Deus nos espera em tudo o que nos acontece – se bem lembro, é Tolentino de Mendonça. O problema é se quisermos apenas que ele nos tire de uma situação difícil, na qual nos aguardava – esperançoso, inclusive – e deixarmos passar a oportunidade de um, dois ou três, quiçá muitos aprendizados cuja oportunidade semelhante jamais teríamos.

     Olhando mais adiante, o que contaremos às gerações futuras sobre os dias de hoje? Serão tão somente lembranças, relatos históricos, carregados de melancolia e dramaticidade, ou nossa herança será lições, aprendizados, parábolas? Em tantos, nesse exato momento – e que Deus no livre disso –, um anúncio na entrada dos cemitérios não resolveria: “Não há vagas”. Mas muito antes do que assistimos agora, desde a muito tempo, outros outdoors, espalhados aos montes por aí, só então nos damos conta de que também eram ilusórios: “Temos dinheiro, podemos tudo”.

     O medo de um invisível agiganta-se como fantasma e, pobre que somos, frágeis como uma folha de outono levada pelo vento, nos agarramos, como crianças assustadas, ao Invisível, agora presente como nunca, lembrado com nunca, Deus como nunca e que nunca nos abandonou, embora grita-se a Ele como se esse último “nunca” que citei não fosse uma verdade.

     A caminho de Emaús, redescobrimos o peso, o valor e a verdade dessas palavras: Como sois insensatos e lentos de coração para compreender... Escutemos o Invisível que nunca, nunca deixou de estar.