O Uber gaúcho
Não me recordo o dia. nem mesmo a hora. me lembro que a tarde já estava a cair.
Pedi um Uber ao sair do trabalho. Aquelas semanas estavam sendo difíceis por inúmeros motivos, e o comodismo me servia muito bem nessa situação. Aguardava na Av. Celestino bourroul n° 100, em frente ao jornal O estado de s. paulo, minha primeira e atual empresa.
Analisei a placa que o aplicativo indicava - logicamente sem prestar atenção no modelo do carro - e o vi chegar.
Entrei e recebi uma recepção calorosa que me assustou um pouco
Boa tarde moça, fica à vontade, aceita bala? - disse com um sotaque gaúcho muito forte em contraste ao meu paulista.
Não, muito obrigada - recusei de forma gentil, como os ensinamentos de mãe para não comer nada que desconhecidos lhe oferecem.
Iniciamos a viagem e só então reparei no moço. Na faixa dos 40 anos, magro, com cabelo liso e curto, que já demonstrava os sinais da idade com seus fios grisalhos. Pelo espelho retrovisor, percebi um olhar amigo - não pervertido, como suspeitamos dos motoristas de uber invasivos - mas que carregava um coração suave.
Como uma jovem comum, peguei meu celular e abaixei a cabeça para ser imersa naquele objeto inanimado. Não me entenda mal, gosto de conversar, mas esse era um período que havia tirado tudo de agradável que existia em mim.
O moço reparou, e tentou puxar conversa
- que legal, você trabalha no estadão né? - disse com um olhar de canto que percebi no retrovisor
- Isso mesmo, o senhor gosta do jornal?
- Se gosto? quando era criança, muito antes desses tempos modernos, saia entregando os engradados do estadão de porta em porta, e assim fazia os meus trocados - seu olhar ia para o horizonte, colocando em seu rosto um sorriso melancólico de que aqueles eram bons tempos.
Comecei a apreciar grandemente a conversa, e ansiava para que a corrida demorasse mais para chegar no terminal barra funda
Nos devaneios, discutimos sobre alguns fatos atuais da política, e expressei muitas opiniões, como se estivesse falando com um amigo, em um churrasco de domingo.
Ao final de uma fala minha, ele para e me olha de novo pelo espelhinho
- Nossa guria, você se comunica muito bem, é jornalista aí no jornal?
E somente com uma frase, um sujeito completamente estranho melhorou o meu dia.
Eu que enfrentava um dilema de escolha de profissional, e só via defeitos em mim, ainda estava em terapia para lidar com um quadro de ansiedade forte.
Eu expressei um sorriso amarelo.
- Obrigada, as vezes eu acho que falo muito.- dei um risinho - Não sou jornalista, mas quando criança já foi uma das minhas possibilidades.
Ele me olhou de esguelha e com um sorriso de canto de boca disse
- Moça, nessa vida podemos ser o'que quisermos. A vida é longa, mesmo que pareça curta, e permite que percorremos diversos caminhos. Se ainda não sabes para onde ir, não quer dizer que está perdida, muito pelo contrário. - deu uma pausa e voltou a falar - Aqueles que estão perdidos, vivem o momento de maior lucidez ao se confrontar com esse mar de possibilidade que a vida proporciona. Enquanto estiver perdida, não pare, pois no caminho vai encontrar o seu destino. Eu mesmo, sou formado em engenharia, mas infelizmente está muito difícil para nós, e se você me perguntar se estou triste sendo uber eu te respondo que não. Estou sendo uber nesse momento, porque a situação pede isso. Mas posso ser engenheiro amanhã, no outro dia cantor e no outro sair vendendo meus poeminhas. Essa é a beleza da vida, ela é móvel, e não devemos colocar nossa felicidade em coisas que podemos perder facilmente.
Essa fala me envolveu em um transe. O uber, que não sabia o'que eu estava vivendo, leu minha mente?
Uma pessoa que não me conhecia conseguiu uma conexão que poucos tinham comigo. Estava tão imersa na conversa, que nem reparei que havíamos chegado ao terminal, para que eu seguisse a viagem de metrô.
Me despedi do moço, perguntei seu nome - que a minha memória fraca não vai permitir com que eu lembre agora - e sai do carro, valorizando mais a luz que o ser humano pode irradiar para outro, e entendendo que a vida é mais bonita quando olhamos para o caminho e não para a chegada.