Nunca antes na história deste país
Vejo na televisão muitas recomendações para evitar o coronavírus. Usar máscara; lavar as mãos com água e sabão, álcool em gel; ficar em casa; manter-se saudável... A mais recente a que tive acesso orienta que, ao entrarmos em casa, deixemos nossas roupas de molho. Se entendi satisfatoriamente a orientação, vai ter muita gente retornando da ida à padaria, ao supermercado, à farmácia nu.
Se essa recomendação sanitária vai pegar, não sei. Não é obrigatória nem prever multa aos que lhe desobedecerem. Mas, ainda que fosse obrigatória e previsse multa aos que a infringissem, isso não lhe asseguraria cumprimento. Se assim fosse, se obrigatoriedade e multas bastassem para conscientizar a população, não seríamos o Brasil —que o diga nosso trânsito.
O que me chama a atenção na medida, porém, é seu grau de inovação. Nunca antes na história deste país (amo esse clichê) imaginaria que fosse desaconselhado a abandonar vestimentas. Desde pivete, passando pela indolescência, chegando agora à velhice dos trinta anos, nunca tinha ouvido semelhante recomendação. Ouço o "Recomenda-se, ao entrarmos em casa, que retiremos a roupa e a coloquemos em saco plástico para ser lavada urgentemente." e me surpreendo com nosso progresso.
Nem quando vi um vídeo que, para utilizar um termo do momento, "viralizou" na internet —em que em um supermercado clientes disputavam aos empurrões o último rolo de papel higiênico—, tive tamanho abalo. Estocar papel higiênico, inclusive, tem sido mais uma de nossas inovações nesta época de coronavírus, assim como o ''Fique em casa", "Mantenha-se saudável".
Tudo isso é surpresa para mim. Sempre fomos um povo andarilho, habituados a viver em multidão, levando informação confidencial a nossos vizinhos —antigamente conhecidas como fofocas, atuais "fakes news". Agora temos de nos acostumar a esta nova versão do povo brasileiro, recluso e profilático, ainda que por força das muralhas invisíveis dos decretos. Todos, em maior ou menor escala, aterrorizados pelo medo de adoecer, cada qual se prevenindo do coronavírus como pode. Os que têm dinheiro estocam em casa papel higiênico, álcool em gel, máscaras, comida em abundância; os que não têm, a maioria, envolvem-se em necessidades, incertezas e muita reza: todos aterrorizados pelo medo de adoecer.
Nunca antes na história deste país de terraplanistas houve tanta gente preocupada em manter-se saudável. Nem sabia que o Brasil tinha tanta gente saudável assim, como pressupõe a propaganda que a cada minuto, ou menos, é divulgada pela mídia. O "Fique em casa'' eu compreendo e até adoto, mas o "Mantenha-se saudável" soa-me ofensivo.
Aonde toda essa saúde que supõem que temos nos levou? Temos um presidente louco; um dólar a quase R$6,00; uma população de famintos e desempregados à casa dos milhões; clientes brigando por papel higiênico, enquanto muitos dos nossos mortos morrem sem ter sequer uma cova onde cobrir-se. Que saúde toda é essa? Eis a pergunta que me deixa desnudo.
Não é a única, porém. Agora, nas primeiras horas desta manhã, sobre os paralelepípedos armados da Cel. José Bezerra Montenegro, de máscaras, toda jeitosa e vestida, de cabelos cacheados enluarados pelo sol, passa uma imagem pleonasticamente inédita nunca antes vista na história deste país.
É a Visão da Terra dos Sonhos, com seus cabelos cacheados enluarados pelo sol. De onde vem, não sei. Suponho que não tenha sido da igreja, que o decreto proíbe. Para onde vai, também não sei. Suponho que não seja para a igreja, que o decreto proíbe. "Será que está indo para casa", sugere a lógica do momento. "Mas que casa?", contesta minha lógica, alegando conflito de interesses. Nisso, a Visão da Terra dos Sonhos, com seus cabelos cacheados enluarados pelo sol, para e leva a mão à máscara, tira-a e abre-me um sorriso todo estadual. E então uma buzina municipal me impede de retribuir esse desacato nunca antes visto na história deste país.