Esse tal "Eu amo você"
EU
Eu sei que sou complicado. Eu sei que muitas vezes é minha própria mão que gira e gira e gira e gira o copo d’água em sua tempestade, com gelo e limão. Eu sei que passo tempo demais refletindo sobre assuntos que são tão íntimos, tão pessoais, que parece que não dedico tempo o suficiente a coisas evidentemente mais práticas, como um plano de carreira ou, sei lá, meu discurso para pedir um aumento de salário.
Eu sei que eu sou estranho.
E mais que qualquer coisa, eu sei que falo “eu” demais. Vício de linguagem, vício de auto-imagem. Mas é mais, eu sei o que eu busco, lá dentro, quando escrevo textos que, como esse, não têm a intenção de agradar ao outro. Desculpa a recepção pouco afetiva, leitor, apenas não estou muito preocupado com você, pelo menos não ainda, mas fique à vontade, pode sentar, sirva-se do que quiser, aparentemente vai ter bolo.
Acontece que eu preciso cada vez mais escrever isso. Escrever sobre “eu”, o que evidentemente é diferente de escrever sobre “mim”. Os gramáticos que me perdoem, mas isso aqui também não é para vocês. Escrever sobre mim seria dizer coisas como o grau (estupidamente alto) dos meus óculos, ou de alguns traumas que, com certeza, de tão marcados devem gerar alertas em raios-x de aeroportos. Falar de mim é mencionar meus defeitos, minhas qualidades, meus sonhos, minhas fragilidades.
Estive conversando com uma grande amiga sobre astrologia, essas conversas que temos sóbrios e de pulmões completamente limpos, nada de olhos avermelhados; e estávamos discutindo sobre a forma com que algumas pessoas podem imaginar os signos como formadores de caráter. Você já pensou se você, calmo em sua casa, recebe um laudo leonino que te permite ser o centro das atenções o tempo inteiro? O signo está te descrevendo ou você está agindo porque o signo te orientou a isso? Nos dois casos é uma forma de prisão. Ou esse não é você. Ou se é, só foi trazido à tona com a permissão temperamental que um mapa astral lhe conferiu. Sim, você está agindo de tal forma baseado em alguma medida na posição de estrelas vistas da Terra no dia do seu nascimento, sendo que, [alerta de clichê], a posição em que você as vê já está muito distante da posição em que elas realmente estão agora.
Eu não quero ser de um jeito porque nasci em novembro (e você pode dizer “típico de sagitariano”), eu não quero ser de um jeito porque uma coluna do jornal disse que esse é o meu dia de ser assim. Eu quero ser do jeito que eu sou. Como todo mundo deve querer ser exatamente o que é, lá dentro, por detrás de qualquer convenção, se é que alguém já sabe como realmente é por trás das nossas imposições pessoais. Eu mesmo, como podem ver, ainda estou na busca.
Falar do “eu” é outra coisa, é mais coletivo. É aquele tal ego, é aquele tal x que pulsa dentro de mim, que é da mesma natureza do x dentro de você, embora não sejam iguais. Falar do eu é falar da essência do que é ser um indivíduo único, com anseios únicos. O que eu sou além muito além do que esperam que eu seja, do que eu mesmo espero que eu seja, do que minhas escolhas e não-tive-escolhas fizeram de mim, o lugar que eu nasci, o lugar que eu me enfiei, o lugar em que eu... enfim. Falar do “eu” é falar da substância secreta que sou eu e que, timidamente, espera aqui dentro, soterrada por toneladas de entulho, a hora em que poderá vir à tona. O “eu” que por tanto tempo tentei adiar, deixa para quando terminar os estudos, deixa para quando tiver um emprego confortável, deixa para quando morar sozinho. E sempre deixa. Deixa.
Não mais.
Esse “eu” precisa emergir. Em mim, em você, nos leitores que ainda devem estar aqui porque eu sei a raça obstinada que é a raça dos leitores, nos gramáticos que devem ter desistido da leitura depois da terceira vírgula mal posta, porque eu sei do pragmatismo dos gramáticos. Esse “eu” precisa se tornar inteiro a imagem de mim. Só depois, quando eu sentir que eu sou plenamente eu, é que vai começar a fazer sentido essa frase que dá título ao texto. Só depois dessa longa e tortuosa busca é que eu vou poder, com todo o peso da sinceridade, partir para a segunda palavra da frase.
E acredita em mim, eu sei que vale a pena.
Por isso eu continuo constantemente escrevendo e refletindo sobre essas crises existenciais em vez de ir no banco planejar meu futuro em parcelas degustáveis. Porque eu quero amar você, mas como você sabe, e eu já disse antes, eu falo “eu” demais.
AMO
De repente, o verbo. Amar. Provavelmente esse foi o primeiro verbo que me ensinaram a conjugar na escola, exemplo da declinação perfeita, sem nenhuma irregularidade que fugisse à regra. Eu amo, tu amas, ele ama. Além disso, o verbo que professora nenhuma precisava explicar o significava.
Todos sabemos desde sempre o que é o amor, provavelmente essa é a palavra a qual concedemos mais poder em qualquer língua, essa é a palavra que bebes devem ouvir assim que nascem, que todos crescemos ouvindo na televisão e no cinema como exemplo de finais felizes. Amar e ser amado é o grande objetivo das nossas vidas.
Alguém já precisou olhar essa palavra no dicionário? Substantivo masculino. Sentimento afetivo, afeição viva por; afeto.
Ou seja, o amor é a aproximação afetiva de uma pessoa por outra. O amor é o contato entre duas identidades que se olham, sob a ponte do Brooklyn em Manhattan, de Woody Allen, e decidem ir embora juntas. O amor é a manifestação externa do “eu”.
Como disse no tópico anterior, a busca pelo “eu” dentro da gente é essencial e urgente, e o amor a outra pessoa faz parte desse processo, mesmo que inconsciente. Diga por quem te apaixonas e te direi quem tu és; porque o teu coração acelerar sem pedir consentimento diante de uma outra pessoa é uma demonstração incrível de quem é o você de verdade, esse que vive lá dentro e que é você em estado puro. O amor é uma manifestação da nossa identidade.
Pena ele ser tão super-exposto. Pena o amor não ser o resultado de uma busca pessoal e solitária, mas sim o meio. Como se se apaixonar por alguém fosse te ajudar a descobrir a você mesmo. Não você se descobre sozinho, e depois é que você ama alguém. Por mais pilantramente Rupi Kaur que isso possa soar, é verdade.
Mas como ter tempo de se descobrir sozinho se todo mundo ao redor parece amar e você parece estar só e muito mais triste que as pessoas que se beijam no meio da maratona de Almodóvar? Como dar tempo para um amor verdadeiro se até as crianças de Stranger Things encontraram o amor aos doze anos enquanto lutavam contra O Senhor das Trevas? E você que nem lutou contra o Imposto de Renda não conseguiu amar ninguém?
Do mesmo jeito que existe um “eu” mais superficial, cheio de imposições sociais, máscaras e maquiagem, e existe o “eu” mais profundo que é puro e único e custa a vir a tona num mundo onde tudo que é diferente não é muito bem-vindo na ceia de Natal; também existe o amor mais superficial e o amor mais profundo. O amor das pessoas que estão plenamente satisfeitas com seu “eu” criado, e o amor das pessoas que sentem que mentem involuntariamente sobre quem são para se proteger de alguma censura, mas lutam, lutam incansavelmente para vir à tona.
A estas, o amor é um fruto doce e raro, como aqueles que assustam por fora mas que sempre valem a pena abrir e provar do interior, como a pitaia.
A aquelas, o amor é intenso, enérgico, extremamente satisfatório no instante e fácil de encontrar, como um pacote de Cheetos Lua.
De todo caso, quem sou eu para criticar essas pessoas? Que argumento usaria para fazê-las buscar algo mais profundo se isso é uma definição minha com a qual provavelmente elas não concordam, e vamos ser sinceros, quem vive amores Cheetos Lua parece ser absolutamente feliz. Por que trocaria essa vida pela experiência de escrever em blogs obscuros cheios de nuvens e passar horas refletindo sobre o quanto é complicado encontrar nossa própria identidade?
As pessoas têm o direito de encarar o amor como elas bem entenderem, e como for melhor para elas. Afinal, essas definições de amor que imponho aqui podem ser só especulações exageradas. No fundo, a gente sempre diverge sobre o que é esse verbo que conhecemos desde o começo da vida. Devíamos todos ter perguntado para nossas professoras de quarta série o que exatamente essa palavra quer dizer.
Enquanto o amor continuar sendo essa palavra onipresente e ao mesmo tempo ambígua, talvez até para ajudar os roteiristas de Hollywood e os escritores de best-sellers, nós temos que aceitar que cada “eu” tem direito ao seu “amo”. Afinal, esse é o verbo regular exemplar, todo “eu” se conjuga com “amo”, todo indivíduo sente que ama, e não mente, o amor se encaixa a cada indivíduo. Não mente quem diz que ama a cada semana para uma pessoa diferente.
Mas como eu disse, cada “eu” é diferente um do outro. E para mim, essa pessoa que busca incessantemente a essência de mim mesmo, amor também só será verdadeiro se for em essência, o eu verdadeiro só vai sentir que ama, só vai acelerar as batidas do coração por uma pessoa que consegue se desnudar das máscaras da mesma maneira. O que é absolutamente raro, sendo que até eu mesmo não consegui ainda fazer isso completamente, e nem sei se um dia vou conseguir.
De todo caso, essa palavra, esse verbo tão comum, se enche de significado junto ao “eu” que veio antes. A palavra pesa. É forte. É intensa. Eu amo. Eu amei. Eu amarei. Dizer isso é a linha de chegada, é o pico do Everest que tentamos alcançar, sem oxigênio nem nada.
“Amor é um contentamento descontente”.
Sei...
VOCÊ
Imagine um mundo perfeito, onde as tragédias não acontecem, onde carros não precisam frear ruidosamente para não bater em senhorinhas, um mundo igual a aqueles vídeos de Instagram em que a pessoa acerta uma garrafa d’´água numa lixeira a setecentos metros de distância, e as coisas dão mirabolantemente certo, e as praias estão sempre ensolaradas. O meu mundo seria assim, não fosse você.
Digo, o meu mundo ficcional, esse mundo de filosofias onde o importante é encontrar a sua própria identidade, ser você mesmo e cantar músicas tema de Malhação, mas como esse mundo é reflexo da forma com que vejo o mundo real, podemos dizer que, se não fosse você, a minha vida realmente seria perfeita.
Se tudo que eu disse nos tópicos anteriores se realizasse por fim hoje mesmo, e eu conseguisse chegar na identidade plena de mim, se conseguisse beber dois barris de coragem e falar o que me der vontade na hora em que me der vontade, raspasse sem medo a minha conta e usasse cada tostão para viajar, só com a passagem de ida para Budapeste, com escala na casa da Vó Isa, e conseguisse não ter medo de pular de cabeça da cachoeira mais alta ou na boca da pessoa mais incrível que um dia eu recuei em beijar. Nada disso representaria muita coisa, e por sua causa.
Explico: Você é o meu constante lembrete de que sozinho eu não valho nada. Que a felicidade não é plena, não importa os anos que faça em voto de silêncio como aqueles monges tibetanos. A felicidade só chega de verdade porque depois do “Eu amo” há um “você”. Eu não amo minhas auto-descobertas. Eu não amo o dinheiro, o frio do inverno, ou as praias de Instagram. Eu amo você. Seus defeitos, sua fragilidade, sua risada, sua própria busca pelas respostas da vida. Eu amar você é a prova de que toda essa reflexão sobre o “eu” é um paradoxo que só existe para me enlouquecer.
A gente se afasta da realidade do mundo, das imposições sociais, das pretensões pessoais, de toda forma de mentira, a gente busca se tornar pleno sozinho, como um salmão que resiste em cair no mar e segue furiosamente contra a fúria do rio, apenas para, no fim, se não for comido por ursos, chegar do outro lado das Terras Baixas, onde, adivinhem, ele cai no mar.
Eu nado, nado, nado, e caio em você.
Eu preciso de um “você”. A gente precisa do outro, a gente precisa dessas pessoas que nos cercam, mesmo sabendo que elas podem nos magoar, que elas podem se afastar, que elas podem se ferir com alguma coisa que a gente disser. E para continuar com o outro, a gente aceita conceder alguma coisa aqui, outra ali. A gente aceita abaixar o tom de voz quando na verdade a vontade é gritaaaaaaar. A gente aceita mudar um pouco, pelo outro.
Até chegar ao ponto que a gente não se reconhece mais. Aí começa a busca pelo “eu” lá da primeira postagem. Droga, ciclos viciosos. Para amar o “você” a gente precisa, em alguma medida, sacrificar o “eu”, e ao mesmo tempo o amor só é realmente sincero quando o “eu” não precisa ser sacrificado pelo “você”. O amor é a dinamite que explode toda essa rebuscada teoria da identidade.
Ou seja, você é um empecilho.
Mas você existe. Você está aí, do outro lado da praça, onde marcamos de nos encontrar. Você faz meu coração trocar de pilhas. E desde mais cedo, quando combinamos, às quatro, vou estar de preto, você já me fazia mudar de rumos. Você fuma, eu sei, mas naquele momento você não cheira a cigarros e eu penso, você não fumou por mim. Eu sorrio, em resposta ao seu sorriso. Nos cumprimentamos numa mistura tênue entre estranhos que se veem pela primeira vez e velhos conhecidos das conversas que tivemos antes, por mensagens. É como se, ao olhar para o seu rosto, cada uma das frases na tela do meu celular e que me encantavam mudassem um pouco seu significado, porque agora eu sei que elas vieram de você.
Mas eu e você percebemos que estamos parados em pé no meio da praça. Olhando um para o outro como dois abobados. A gente não planejou nada além daquele instante, em que nos encontrávamos. Agora daqui para frente é campo aberto.
“Eu” digo quer sorvete? “Você” escolhe abacaxi com hortelã.
“Eu” sento de frente para você na mesinha da sorveteria. “Você” se lambuza.
“Eu” pergunto sobre o filme que nós assistíamos ontem, cada um na sua casa, trocando ideias por mensagens. “Você” fala a sua parte favorita, sorri.
O açúcar faz seus lábios reluzirem.
Passam-se horas. Anoitece.
“Você” pergunta se eu quero ir para sua casa. Nós dois sabemos que à noite a cidade vocifera. Na tua pergunta há muito além daquelas meras palavras, é um código, eu poderia ir embora, você sabe, você também poderia não convidar. Ir à sua casa. Ir. Esses movimentos em frente.
“Eu” digo quero.
E nessa hora, enquanto caminhamos juntos debaixo daquelas estrelas todas, não existe toda essa reflexão sobre identidade, liberdade, filosofia, solidão, medo. Nessa hora tudo o que existe se resume a três palavras, que ainda não são ditas, mas estão tão presentes na eletricidade do ar quanto moléculas de oxigênio. Sei que “eu” sou complicado, sei que “Amor” é uma palavra ambígua, sei que “você” não facilita em nada. Mas lá está, cristalino como água:
“Eu” ”Amo” “Você”.