Subindo e descendo o Morro do Ouro


[SUBINDO]

Quando anunciei em casa que ia subir o Morro do Ouro, para fazer uma visita à Igreja da Sagrada Família, Betinha não escondeu sua preocupação.

"Vá bem-vestido", disse ela. "Os moradores dali andam muito impacientes com estranhos."

Bem-vestido!

Lá estava eu, na frente dela, pedindo sua opinião — bermuda de linho branca, sandálias de couro de búfalo (búfalo clonado, bem entendido) e camisa pólo cor de mostarda, além de minha bolsa de cânhamo, já famosa nesta terra de contrastes que é a Ilha do Governador. Por fim, toda esta pinta de anarquista mitigado que o morro talvez viesse a confundir com o que há de mais inócuo sobre a face da Terra.

Ainda assim, mesmo subestimando os temores e tremores de Betinha, não era prudente desconsiderar que entre o sopé e a igrejinha branca no topo da ladeira a barra podia ficar bastante pesada para o transeunte solitário, em meio ao insidioso silêncio da ruazinha deserta.

Quantas janelas não estariam de olho no pobre forasteiro do asfalto! Podia ser um pecador buscando o socorro da igreja, alguém que se enganara quanto ao endereço da ACM, ali perto, ou até mesmo um falso insulano preparando futuros assaltos a residências, coisa tão comum entre nós nos últimos tempos.

Sim, porque o Morro do Ouro é um morro de classe média, com seus prédios de apartamentos caros e casarões de bacana. Dá um medo danado passar sozinho por ali, sob a desconfiança universal de tanta gente fortificada atrás de seus muros altos e seus portões de ferro, sem falar na exasperada e barulhenta vigilância de grandes cães de guarda.

Bem-vestido!

Betinha tem razão. Vão pensar duas vezes quando o cronista passar, de onde quer que o estejam observando, e talvez até apareçam em suas janelas e varandas para cumprimentá-lo amistosa e civilizadamente. 


[DESCENDO]

Quatro da tarde.

Volto à Igreja da Sagrada Família, no alto do Morro do Ouro, e escrevo no adro, à sombra de uma velha mangueira. Além de mim, ninguém no pedaço. Gosto disso.

Há dois ou três minutos o sacristão veio dar uma espiada na pinta do cronista, fingiu concertar uma bola de pedra na mureta do adro, mais pesada do que ele, e afastou-se com um ar de neutralidade que me pareceu bastante tendencioso. Não posso culpá-lo. Em sua velhice de padre eterno, nos últimos 93 anos — a igrejinha branca é de setembro de 1913 — deve ter afugentado muitos casais de namorados que buscavam a solidão do matagal em volta e chamado a polícia para um sem-número de adoradores do grande barato.

Azar. Estou em outra. Ora anoto uma linha de minha crônica, ora contemplo, lá embaixo, o belo arco da Praia da Engenhoca repleta de banhistas na areia e nos quiosques. Na água, só os corajosos de sempre, em geral crianças, e uma grande festa de barcos e traineiras dos pescadores do lugar. Mais adiante, não longe da costa, a Ilha d'Água, inteiramente desfigurada depois que a Shell instalou ali — quem deixou? — seus imensos latões de óleo bruto. De onde estou, forçando um pouco a barra, a ilha parece um trombone em decúbito dorsal.

Próximo à velha oficina de lanchas, hoje um casarão sem estilo, um vulto de mulher acaba de atravessar a rua em direção a um quiosque. Daqui do alto, só percebo o balanço inconfundível do corpo e a nonchalance das deusas ensolaradas quando se misturam aos simples mortais. Dizem que são generosas com os poetas.

É melhor descer. Descer e conferir.



[18.3.2006]