MERGULHO NO ABUNÃ

O MERGULHO NO ABUNÃ

Série: AVENTURAS

Autor: Moysés Laredo

O rio Abunã é um rio limítrofe que divide o Brasil da Bolívia, ocupa quase toda a fronteira norte com a Bolívia. O rio Abunã (ou Abuná, na parte boliviana) um dos afluentes do curso alto do rio Madeira. A sua parte brasileira banha os estados do Acre e Rondônia.

É um rio boliviano por assim dizer, pois nasce nas cordilheiras dos Andes com extensão 370 km. A sua grande característica é a correnteza, o rio também, é conhecido por suas muitas corredeiras, na maioria do seu percurso, possui grandes rochas submersas e leito pedregulhoso, o trecho que entra no Brasil, na altura do Estado de Rondônia tem grandes formações de rocha e cavernas submersas desconhecidas, que provocam no seu curso, uma série desencontrada de turbilhonamento, criando um devaneio para quem, por descuido, cair nessas águas. Têm-se relatos de que muitos que já pereceram neste rio, uns por descuidos, outros por desconhecimento dos perigosíssimos vórtices que são gerados nos recantos das rochas submersas. Um conhecido médico do sul, residente em Rio Branco, entusiasta de pescaria, deixou cair n’água sua caixa de ferramentas, quando pescava de canoa com alguns amigos, achou que era raso o local, os amigos o desaconselharam, tentaram dissuadi-lo, em vão, dizem que ele foi contestando os argumentos dos colegas e descendo da canoa, viu que não dava pé era fundo, porém avaliou que o equipamento valia muito, e mergulhou atrás, infelizmente nunca mais retornou, seu corpo foi encontrado, aliás, do que restou dele, alguns dias depois, a 12 km do local, entalado numa das muitas “locas” locais. Nessas locas (pequenos buracos nas rochas formadas por abrasão), habitam várias espécies de peixes da fauna amazônica, notadamente os de couro por serem necrófagos, e se alimentam de depósitos orgânicos e eventualmente de cadáveres.

A pequena cidade do distrito de Fortaleza do Abunã a 280 km de Rio Branco faz fronteira com a Bolívia, no Departamento de Pando (eles não têm Estados, e sim Departamentos) para chegar-se até lá, percorre-se os quase 20 km de leito carroçável rochoso, (chama-se assim as vias, quando se projeta uma rua para tráfego de veículos) feito pelos moradores, a partir da BR 364, na altura do km 260, sentido Rio Branco/Porto Velho. Próximo da cidadela segue-se por ruas ou labirintos desviando-se dos grandes blocos de rochas do caminho, até se chegar ao lugar onde hoje é o distrito de Fortaleza do Abunã à beira das corredeiras.

O recanto Fortaleza do Abunã, nos idos de 80 atraia muitas pessoas vindas dos dois Estados, por ser um lugar natural sem muita modernidade, muito aprazível, que oferecia aos visitantes, um ambiente rústico, com suas casas simples, na maioria de pedra do próprio local, algumas em madeira. Por suas ruelas não passavam veículos, todos tinham que estacionar a certa distância, as ruas de muito estreitas que eram não permitiam o tráfego de veículos, isso, acrescentava o clima de sossego e todos se deslocavam pelas vielas sem susto de serem atropelados, além do que, todos se conheciam e o respeito era mútuo dos visitantes, o cumprimento se dava na base do -“boa”- (abreviatura de bom dia, boa tarde e boa noite). O melhor mesmo era o visual que a noite oferecia clima ameno de muita ventilação natural, natureza de floresta primária ao redor, oxigênio puro, pouca iluminação das casas, nada de postes de rua, muita ventania, não havia os infernais carapanãs para tirar a tranquilidade de quem se aventurasse por lá, acho que era por causa dos ventos fortes e eles não conseguiam pousar em nada, com isso eram arrastados, mas na realidade é que as águas do Abunã possui o PH muito baixo, (ácido) assim, matava suas larvas.

Era comum verem-se pessoas, “hippies” da época, dormindo ao relento. Já do lado boliviano, o outro lado do rio Abunã, era totalmente solitário, não havia nenhum movimento de pessoas residentes, a não ser alguns pescadores que se viam aos longe, e os distinguíamos por seus chapéus de palha de abas caídas e suas vestimentas típicas, manta coloridas sobre os ombros, mas nunca interagiam com os brasileiros, cada um na sua, acho que ainda se lembravam da surra do início do século que Plácido de Castro e os acreanos os impingiram na tomada do Acre.

Mudando de assunto, porque aqui a história é outra, trata-se de um episódio que marcou minha vida nesse recanto maravilhoso e foi de fato uma situação real de vida e morte nunca antes experimentado.

Estava eu com alguns amigos no fim da década de 80, em Fortaleza do Abunã, pescando, num dos poucos momentos de lazer, para me acomodar melhor, procurei uma grande pedra na beirada do rio, e de lá, jogava minha linhada com isca viva ou cortada, no meio da correnteza, que facilmente a levava, não precisava nem de chumbada para afundar, embora eu não coma peixe de couro, mas o pessoal dava o maior valor nos bichinhos e isso “enterava” o rango. A pescaria estava bastante animada, ainda era cedo da manhã, o sol não estava tão forte, as águas frias, tudo propício para pescaria, assim diziam os conhecidos do local. Eu tinha uma faca com sua bainha própria, daquelas de selva, marca e logo de um “Touro” que me acompanhava desde os tempos que fazia minhas caçadas de patos no Janauari, cortava até o vento, era de estimação e muito invejada pelos companheiros, faca de lâmina preta e grossa e muitíssima afiada, no cabo rosqueado, se guardava linhas e anzóis. Na animação, tirei a faca da bainha para cortar mais algumas iscas, a minha tinha acabada de ser engolida, e foi ai que tudo aconteceu muito rápido, não deu pra avaliar o perigo, a faca escapuliu da minha mão ensebada das outras iscas que cortei e se foi retinha para o fundo arenoso do rio. De onde estava, olhei para baixo e calculei que tinha mais ou menos uns dois metros de profundidade, ainda via a faca pelo cabo, a descer lentamente. Essa profundidade é fichinha pra mim, que sempre mergulhei bem, haja vistas as peripécias que fazia debaixo d’água no porto de São Raimundo quando criança mergulhando por baixo das embarcações. Sem duvidar de nada, (do livro Meu pé de Moleque – autor Moysés Laredo) imaginei pular de pés juntos no mesmo local que a faca caíra. Quando finalmente saltei ainda de olho na faca, assim que as bolhas se dissiparam acompanhei-a com o olhar para não a perder de vista, me dei conta que a faca não chegava o final e nem eu também, e tome o tempo a passar e nós a descer cada vez fundo, comecei a me preocupar se o meu fôlego aguentaria voltar, olhava para a faca, que seguia à minha frente descendo cada vez mais sem parar, começou a rodopiar, sempre do jeito que caíra. Porra! - Lá de cima não me parecia ser tão fundo assim, tinha até colocado isca nesse lugar para ver se pegava algum peixe e assim constatei que não era tão fundo, - O que está acontecendo? Muito confuso me dei conta da cagada que fizera e dei início a tentativa para retornar, pois avaliei logo que não conseguiria pegar a porra da faca antes do término do meu fôlego, embora na época, mergulhava por apneia em torno de 2,30 minutos. Tentei sair dali de braçada, mas era mesmo que nada, notei que não saía do lugar, mesmo com os meus esforços, continuava descendo, então, vendo que não tinha jeito de sair por onde entrei, e estava me cansando mais rápido, me virei e mudei de direção, agora descia de cabeça ainda dei mais impulso, acreditei que em algum momento chegaria ao fundo, lembrei-me de uma ocasião na praia de Ipanema, que fui arrastado pela corrente marítima, me afastei muito da praia, me salvei porque me deixei levar até onde a corrente quis me largar, procurei não entra em pânico, depois com a corrente já enfraquecida, pude sair dela, o mesmo fiz no mergulho do Abunã, me deixei levar, e de fato, cheguei no que parecia ser o fundo, mas o tal fundo, nada mais era que uma clareira com ausência de rocha, vi que predominava no leito, uma dança macabra de vórtices (redemoinhos) que levantavam areias amareladas e seguiam em direções diversas, se dividiam para entrar nas cavernas, que ali estavam drenando todo o fluxo, como nos desenhos animados, do Scooby Doo, quando vários fantasmas os seguiam, formando longas esteiras de nuvens de suas caldas. As tais cavernas funcionavam como grandes tubos submarinos sugando toda água, mesmo no sufoca em que me encontrava, tinha que ficar de olhos abertos, precisava ver até onde aquilo ia dar, buscava uma luz indicando uma saída. Ainda sem movimento voluntário, sempre levado pelas correntes, mesmo que eu mexesse os braços não adiantava em nada, e já com o fôlego expirando, tinha até me convencido que chegara a minha hora, pois dali não tinha como retornar, havia descido tanto que fiquei desorientado, mesmo se pudesse retornar, não saberia por onde começar, cacei com os olhos aquelas bolhas de ar presas nas reentrâncias das rochas, como se vê nos filmes, até vislumbrei algumas, mas como chegar até elas, se não havia nenhuma mobilidade, estava preso na correnteza, assim sendo, me deixei levar, do jeito que fiz também no Banho da Cerveja, em Cortez, município de Pernambuco quando participei do Projeto Rondon – Operação Nacional, (do livro Meu pé de Moleque – autor Moysés Laredo) aprendi com a garotada local, a relaxar e deixar a correnteza me conduzir delicadamente por entre as rochas sem que eu me ferisse ou esbarrasse em alguma delas. No desespero, já vendo estrelinhas douradas estalando no fundo dos olhos, mesmo assim, me convenci de que viveria até os últimos segundos. Li certa vez, um relato de um jovem judeu, sobrevivente do Holocausto que a sua vez estava chegando, na fila da câmara de gás, não se desesperou, se apoiou em D’US e ficou à espera, não podia correr, pois assim morreria por uma rajada de metralhadora nazista, além do mais, era suicídio, coisa abominável no judaísmo, ele então ficou quieto no seu canto até chegar a sua vez, quando no seu último segundo, já com o pé no degrau, tudo foi paralisado, os russos estavam na porta para libertá-los e os nazistas fugiram às pressas, ele escapou porque aguardou até o último segundo, lembrei-me disso, era um acalanto para minha alma, mesmo assim, encomendei-me com a oração do “Shemá” e assim me preparei para esperar o meu “último segundo”, eu deveria apagar por mim mesmo, não tentaria respirar debaixo d’água para me livrar logo daquela agonia, segurei o pânico, estava sereno aguardando a minha vez como o jovem judeu sobrevivente, mas graças à D’US, então como num passe mágico o socorro veio em forma de uma luz, meus olhos viram, através daquelas águas turvadas, não muito longe dali, um clarão que se abria mais a frente, e num esforço supremo com os pulmões já em completo colapso, acho que já respirava o tal ar residual, aquele que fica permanente nos pulmões que apenas o liberamos quando morremos, fiz uso dele como meu último recurso, aquela altura acho que havia batido o meu recorde de apneia. Com a visão enublada, me lancei num impulso desesperado naquela direção, gastei os meus últimos Joules de energia e aflorei no clarão, era um pequeno corpo d’água entre as pedras, que chamam de poço, onde se pesca algumas das espécies de peixes, mais solitárias. Do impulso que imprimi, emergi de um salto, como fazem as grandes baleias na superfície, quando renovam o ar de seus pulmões, pude encher os meus já totalmente vazios, peguei aquele ar num longo silvo, igual ao suspiro da jiboia depois que emerge em cima da sua presa, respirei desse jeito, o ato de respirar é coisa que se esquece normalmente, até nem se percebe que se faz com tanta naturalidade, mas, quando falta, se sente o valor de poder respirar, de sentir os pulmões se encherem totalmente, que maravilha de D’US. Estava salvo, nem acreditei, a faca que se foda, não quero mais saber de faca nenhum, me sentei para descansar segurei a cabeça com as duas mãos, ainda ofegante, tremendo da emoção, bebi água ali mesmo com as conchas das mãos, revivi os momentos de desespero que acabara de passar, chorei sozinho, nem me dei conta do tempo que fiquei ali, agradeci a clemência do Criador, por me reconduzir para a vida, lembrei-me dos meus irmãos e filhos, que a essa hora chorariam a minha perda, depois, me recompus, escalei a pequena encosta da parede do poço e para minha surpresa não vi ninguém em volta, muito menos reconheci o lugar que estava, continuei andando até que vi de longe o pessoal amigo, simplesmente tinha percorrido, de onde saltei inocentemente em busca da malfadada faca, uns 100 metros por debaixo de toda aquela rocha, que parecia sólida na superfície, no entanto, de inúmeras cavernas ainda totalmente desconhecidas.

Entendi depois, revendo minha trajetória, que a faca não descrevia nenhuma linha reta em direção ao fundo, como imaginei, porque simplesmente era carreada pela correnteza, descrevia dois movimentos, um vertical outro horizontal, ou seja, parte de uma parábola descendente de um diedro. Do meu ponto de vista, parecia que a faca descia reto, no entanto, estava “voando” como eu também, sendo levados em pé, pela forte corrente submarina, tai porque eu nunca chegava ao fundo. De volta à vida, ao surgir na frente dos meus amigos, foi o maior espanto, pareciam ver fantasma, já me tinham dado por morto, embora fosse pouco, o tempo do meu desparecimento, talvez uma hora ou mais um pouquinho, mas todos sabiam de antemão que, quem ali caísse e do jeito como afundei direto, sumindo rapidamente diante dos seus olhos, certamente que não sobreviveria, foi difícil contar pra eles o que se passou, ainda estava muito abalado, só consegui dizer pra eles – “Só sei que foi assim”, parodiando o personagem Chicó de Selton Mello, do romance “Alto da Compadecida”, do grande escritor romancista Ariano Suassuna. Escapei fedendo, igual ao mergulhador que se viu diante de um tubarão e borrou as calças dentro dos trajes de mergulho, o tubarão não o comeu, mas ele escapou “fedendo”, dai o termo que se criou para essas ocasiões, comigo foi “igualito” só não contei essa parte, para não manchar minha reputação.

Molar
Enviado por Molar em 04/05/2020
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