A MULHER QUE PARIU BOTOS

A MULHER QUE PARIU BOTOS.

Mistérios da Amazônia

Autor: Moyses Laredo.

Em toda Amazônia se conhece que, em qualquer povoado se convive com lendas e mistérios, e essa, no “Vai-Quem-Quer”, não é exceção. É uma pequena comunidade com poucos habitantes, e lá, os mistérios são vivos, contados em rodas de cânticos e procissões, pelos mais velhos, ouvidos e seguidos pelos mais novos, e assim, a história oral se preserva e é transmitida de geração em geração. Uma delas em especial, me chamou muito atenção, é a que fala dos encantos do boto vermelho (boto-cor-de-rosa), que histórias fantásticas contam por lá! Dizem que os filhos que se originam dos botos, possuem dons especiais, diferentes dos humanos, eles são mais altos, bonitos, dóceis e extremamente educados, se vestem sempre de linho branco, às vezes usam chapéus, mais para esconder seus narizes, um pouco avantajados, não falam muito, e não se envolvem em brigas, são também exímios dançarinos que logo encantam as mocinhas. Alguns dizem, que isso é abusão! (Ilusão; superstição; crendice), como falam os mais antigos. Eles só não gostam de ter que tirar o chapéu, porque dizem possuir um enorme furo bem no cocuruto da cabeça, assim também relatam os moradores. Até fizeram um filme chamado “Ele, o boto” de 1987, dirigido por Walter Lima Jr. sobre essa dita lenda amazônica, tendo como ator principal, Carlos Alberto Riccelli. Na película, ele sempre preserva o furo em sua cabeça. Na verdade, segundo a anciã, dona Mocinha, garante não ser ali que o tal furo se situa, e sim, nas costas deles. O pessoal sempre pede que tirem os chapéus de quem entra nas festas, aquele que se recusar a tirar, não entra, pode ser um boto disfarçado, mas, mesmo assim, eles conseguem entrar tirando os chapéus sem problemas, porque será? Se observar com bastante atenção, ainda dona Mocinha, verá que soltam uns fungados baixinhos, de vez em quando, do comecinho das costas, logo abaixo do pescoço, tipo o sopro das trocas gasosas dos verdadeiros cetáceos, (botos, golfinhos, baleias). Quem estiver por trás de um deles, vê benzinho um leve estofo de suas camisas. Eles participam alegremente da vida dos humanos, como disse a quase centenária moradora, dona Mocinha, que também se gaba de já ter tido vários filhos de boto. “- É acompanhando eles que se conhece suas qualidades”, diz a senhora com tanta certeza, no alto das suas experiências vividas com eles. Uma delas é que adoram comer carne, mas são avessos a qualquer tipo de verdura, gostam também de legumes e cereais, principalmente o milho, que pode assumir as duas qualidades, é considerado cereal, quando seus grãos são secos, e legume, quando frescos (verdes). Se alimentam com mais frequência de crustáceos e peixes, suas preferências são para peixes crus, não ofereçam peixe assado ou cozido que eles recusam, isso, quando se vê um deles comendo, o que também, segundo dona Mocinha, é raro. Quanto a eles serem vermelhos, ou pretos, é uma questão de raça, os botos pretos, conhecidos como tucuxi, são tidos como maus, dizem que quando alguém está se debatendo dentro d’água se afogando, o boto preto atrapalha mais e não os socorre, já o boto “vermelho”, conhecido também como Uiara, salva, puxando os afogados pela roupa e os levando para a praia. Existem muitos relatos sobre essas salvações.

Dona Mocinha contou que criava seus “filhos botos” à base de peixes, sempre os servia cortados em pedacinhos pequenos, tipo fatiado, para eles que, ainda pequenos, não podiam comer peixes inteiros como gostavam, engoliam os pedaços sem mastigar, mesmo tendo dentes normais. Os garotos já grandinhos, gostavam de mergulhar no rio, em frente da casa dela, e de lá, já voltavam de barriga cheia, satisfeitos, não se falava em comida pra eles, na casa dela. Que coisa mais interessante! Estou cada vez mais encantado com tudo isso que ela me contava!..., nunca tinha ouvido falar, em detalhes tão bem esmiuçados como esses, que a dona Mocinha estava me revelando, de um ícone da cultura popular da Amazônia. Continuou sua interessante e emocionante narrativa. Disse que à noite é onde eles se revelam mais, e que adoram tomar banho depois da meia noite, caem n’água sem o menor receio, pode ser até em meio a lagos de piranhas e jacarés, que somem de vista, só se avistam as suas barbatanas caudais, assim que mergulham na água e por ser à noite, não se vêm mais nada, muito menos, se boiaram ou não. Dona mocinha diz que eles, assim que entram na água, se transformam em peixes. É comum abandonarem as festas e se jogarem no rio, depois da meia noite, isso é um mistério que assombra o pessoal local, porque dizem que eles arrastam as meninas com ele para o fundo do rio e as engravidam. Dona Mocinha contou que não há perigo nenhum, eles ficam soprando na boca delas o tempo todo, por aqueles buracos que têm no alto da cabeça (espiráculos) nenhuma se afogou até hoje, ela mesma foi uma das que mergulhou com os botos, “levam a gente por lugares lindos, parece que a pessoa está sonhando” disse isso com um sorriso no rosto já enrugado. O misterioso é que depois de um mês, quando aparece a lua cheia, as menstruações delas suspendem, é menino na certa, pode contar daí a nove meses.

Teve um grande regatão (comerciante dos rios) de nome Ohnirtsem, um holandês, homem gordo de baixa estatura, que viajava muito por essas bandas de cá, e foi apelidado de boto, e assim ficou por muito tempo, ele se vestia de terno, de linho branco e chapéu também branco de palha, modelo Santos Dumont, mais para proteger suas entradas que tanto sofria com o sol abrasador da linha do equador. Dizem que as filhas das famílias simples do povoado, lhes eram entregues graciosamente por seus pais, ainda bem mocinhas, faziam questão que o regatão fosse seu “primeiro”, elas eram criadas para o deleite dele, assim diziam por lá, isso lhes honravam muito, ouvi uma conversa assim, de um morador, contando como fazia: - “Pronto seu “Ornit”, como era mais conhecido, “- Aqui está minha menina, gorda e cevada, do jeitinho que o senhor aprecia, ela foi criada na base de mingau de puba, açaí e peixe com farinha das caroçudas”. O estrangeiro a examinava dos pés à cabeça, com as narinas repuxadas e um sorriso babento, igual ao do lobo diante do cordeirinho a espera para devorá-lo, e ela, com o olhar angustiado por saber sua sina. Então o “lobo”, puxava-a para si, dava-lhe umas boas fungadas no pé do pescoço, junto a seus longos cabelos negros, fazia um giro em seu corpo, só para poder apreciar melhor as já salientes nádegas da ingênua criatura. Satisfeito com o que via, agradecia ao pai, com um leve balançar de cabeça, de aprovação, - “Poder deixá, eu vai cuidar dela bem”, em seguida, desciam para seu camarote. O pai da menina, já saía dali com o seu escambo, um “presentinho”, que podia ser um motor de popa, uma moto serra, um pequeno grupo gerador, ou até mesmo um remo bem trabalhado com sua logomarca, dependia do gosto do comerciante. A menina acompanharia o regatão rio acima em suas viagens, que só a devolvia, um mês depois, quando por lá regressava. Na entrega, deixava-a cheia de presentinhos, com uma maletinha de badulaques, fazia rasgados elogios ao pai, contava as maravilhas que era a criatura, de bem cuidada como ela não tinha igual, a menina totalmente imberbe, não tinha uma marca no corpo sequer, nem aquelas de vacinas. O pai não se cabia de tanto contentamento, e já ia dizendo pro homem, esboçando um sorriso risonho, igual ao do Gato de Cheshire (Alice no país das maravilhas), - “Olhe seu Ornit, no próximo ano a menorzinha aqui já vai estar no jeito, vamos esperar o senhor de novo por aqui”. Assim, contavam, e quando a menina engravidava, não querendo dar muitas satisfações aos vizinhos, iam logo dizendo ser filho de boto, assim, eram dispensadas de maiores explicações.

Dona Mocinha também contou, com um certo ar de tristeza, que dos cinco filhos que teve com botos, não ficou nenhum com ela, todos ao crescerem se foram, sumiram nesses “riozão”, mas tinha uma coisa que a acalentava, todos os anos a visitavam e sempre em luas cheias e na época das festas juninas, e quando o faziam, ela já conhecia, porque ao longe davam aquele assobio, depois subiam pela escada dos fundos, pegavam suas roupas que já estavam dobradinhas na maleta de palha de milho, cada uma com seus nomes humanos, se vestiam e simplesmente iam ao seu quarto fazendo os ruídos característicos, um tipo de assobio mais longo, diferente dos golfinhos, os quais, ela já os conhecia perfeitamente, decifrando exatamente o que queriam. (Cientistas brasileiros dizem ter identificado mais de 237 sons diferentes dos botos vermelhos). Eles sempre lhes traziam presentes, que provavelmente deveriam achar pelos fundos dos rios, algumas quinquilharias tipo conchinhas, lacres de latinhas de cerveja, cordões, medalhinhas e até joias caras, tudo que viam e que brilhava, achavam que sua “mãe humana” gostaria. O mais insólito é que, eles não aparentavam envelhecimento algum, embora ela os reconhecesse a todos, notava que, nenhuma ruga sequer marcava seus rostos lisos, e que suas aparências humanas permaneciam as mesmas, iguais a quando partiram, disse que podia passar o tempo que fosse, eles não envelheciam. Que loucura, eu fiquei muito tempo em silêncio a bom absorver aquelas passagens lendárias. Até hoje ninguém desmentiu suas histórias, sabem apenas o superficial sobre eles, eu tive a tremenda sorte em conhecer dona Mocinha. Alguns anos depois, quando quis saber notícias dela, me avisaram, que havia falecido meses atrás, aliás, seu corpo nunca fora encontrado, o povo disse que provavelmente, tenha sido levado pelos seus filhos botos.

Molar
Enviado por Molar em 04/05/2020
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